sábado, dezembro 31, 2005


Chegava este último dia do ano e lembro-me bem de eu ficar toda a tarde aqui esquecido, esquecendo os dias muito sentados à minha frente. Estendido pelas minhas ferramentas o meu rosto desenhava-se em rugas e assim, com o cuidado das mãos na madeira, apagavam-se as cicatrizes quentes dos meus sonhos. Lembro-me de todas as tardes eu estar aqui e toda a minha vida estar tão ali, tão plácida quanto os dias. como se tudo pudesse realmente ter sido assim. nesta espécie de sensibilidade extrema, tão extrema como uma eternidade possível e de uma ternura que me crescia pelos ombros batendo as asas. nas árvores. lá fora, detrás da garagem cuidada, lembro-me bem das árvores e de um poço de água muito negra. tão negra como o pêlo musgo de todas as mulheres da minha memória e das minhas mãos. lembro-me bem. e os anos contínuam a passar. e eu lembro-me bem de me teres dito, inclinado para o trabalho, que o tempo passou atrás dos anos entornados assim pelos dias.

sexta-feira, dezembro 30, 2005


Lembro-me de perder tudo. Por onde quer que andasse eu deixava tudo o que era meu em todo o lado. Lembro-me de como a minha mãe me doía. por mim. por eu esquecer tudo quanto era meu em todo o lugar. deixei aquela caneta naquele café, mãe. deixei a mochila dentro da sala. perdi dois casacos. perdi tanta coisa e tu doías-me por dentro ao me dizeres que eu não podia ser assim. que um homem não pode ser assim. hoje, se me ponho a pensar nisto, vejo que não perco nada há muito tempo. há anos. há anos em viagem. que não perco nada. não perco nada, mãe, porque ao deixar de me esquecer das coisas esqueci-me de mim. fechado dentro daquela sala. naquela caneta. que agora não perco, por não haver eu. por haver um homem. um homem que é por dentro uma memória que nunca esquece.

quinta-feira, dezembro 29, 2005


E para nascer? Em dois kilogramas de farinha deitavamos uma dúzia e meia de ovos. um quarto de litro de azeite. o sumo de uma laranja. uma colher e meia de sopa de sal fino. e sessenta gramas de fermento. todos os anos a minha mãe nascia exactamente aqui. ignoro que palavra ou som se soltava das suas mãos enquanto a massa era golpeada até à dormência numa violência de um amor enorme. eu ignoro o que acontecia; se a minha vida estremecia, se de amor eu me comovia e aparecia cegamente abraçado e enorme em torno dela. tão trémula. tão esmaecida na mulher profundamente árdua que então se iluminava só, na cozinha.

domingo, dezembro 25, 2005

sábado, dezembro 24, 2005


Tantas vezes entrei aqui e disse o vosso nome. Um por um. Tantas vezes fechei o punho por cada um de vós, por cada uma das vossas vozes e presenças. tantas vezes nunca nos tocámos, tantas vezes com os pés em coral entraram aqui de ombros macios e nada me disseram na brancura das manhãs. tantas vezes eu estive aqui e apenas ouvi o meu eco. tantas vezes tudo. tantas vezes tão pouco. e talvez tenham até sorrido ou comigo comovido. tal como em quase tudo na vida sem sabermos aqui estamos, é certo. e durante esta noite, ao a manh'ser, não estamos aqui senão sob forma de uma presença ausente. e ainda bem. porque mesmo que não me tenham ouvido ou sequer visto, em boa verdade sabem bem que eu me levantei lentamente e por entre a noite passei por vós, e disse num murmúrio leve e luminoso. bom natal. bom natal a todos. a todos vós e a ninguém. a todos os que comigo amanhecem, e a todos os que sem mim são.

quarta-feira, dezembro 21, 2005


Eu penso nisto tudo e sei que sou a minha mãe nascida num relâmpago nu, firme e silencioso como num tempo antigo de doçura e sonhos. A imagem, qualquer tua imagem é um objecto transcendente, degradado, passivo e de uma irracionalidade tão bruta que se fecha sobre si mesma numa interioridade nunca exterior. Tal como ontem, na treva do limite de um livro à beira de uma cama, aqui eu sou a absorvente e maravilhosa memória da melancolia do que jaz deitado aí numa mesa tão pura. Eu tenho a memória, tenho talvez também as fotografias como incêndios pela luz fora. e tudo isto o que quererá dizer? De repente olho para mim e sou todas estas imagens que me ardem nos espinhos que me inspiram. Tanto caminho caminhado. uma fotografia, toca-me todo e no chão ergue-se de novo a canção luminosa da tua voz. Uma fotografia podia bem ser o gesto das mães que na costura dobram ainda os dedos correndo pela única noite de haver imagens que nos perseguem como ecos.

terça-feira, dezembro 20, 2005


E no fundo de mim sou apenas humano. de uma humanidade que se desprende para fora dos livros que me lêem ou do que por venturas e desventuras aqui se escreve ao toque suave dos meus dedos.a esta hora espraia-se o mundo derramado nos elevadores apinhados e no suor frio e animal das pessoas, lá fora, o natal cresce no rosto das ruas e a superfície do mundo corre pelas pernas e pelo sexo delas debaixo de mim, debaixo do meu coração que bombeia em ecos lentos e difíceis pelo frio. por acaso sei agora, tenho exactamente agora aquela impressão absoluta como um diamante de por dentro de mim nada mais haver senão esta humanidade infinita e impossível de imaginar rigorosamente. os limites da minha fotografia vislumbram-se talvez aqui. se qualquer grafia fosse de alguma forma este absoluto, eu tenho o sonho estranho de que nada no mundo restaria senão uma brisa ou o teu cabelo urgente, meu amor. depois eu penso que é tão triste haver coisas do outro lado das montras. naquele abandono infinito de estarem expostas e posicionadas. penso nesta tristeza como quem pensa numa fotografia. e eu permaneço aqui sentado, infinitamente sentado aqui. naquele peso que se afunda numa serenidade que não admite convidados. com o meu corpo estreito e organicamente tecido numa teia de dor e prazer tão característica da vida. estou aqui sentado, e esta humanidade sou eu, como se devagar fosse uma mulher expulsa do mar pelo corpo vivo das ondas brancas, ou aquele navio que se estivesse no ártico, enquanto respiram as baleias, podia muito bem afogar-se luminoso num último gesto de uma vertigem e liberdade excessiva. eu penso: uma fotografia. onde poderei ser o silêncio que morre aqui quando digo uma imagem?

terça-feira, dezembro 13, 2005

segunda-feira, dezembro 12, 2005


Por amor, dizia. Por amor, são estes os dias que me trucidam assombrados, assim com o sorvo do coração no rosto e o sangue que me treme pelo corpo tão leve e vertical como o frio. De todos aqueles que eu sou, eu sei que em mim, por dentro deste sangue, só há estes lugares de longe num pavor fechado e frio como o de uma criança aberta e descarnada ao vento. ao vento. Eu sei que isto nada importa. que na voragem dos nós dos dedos se morre sem sentido por cada palavra mal gasta em pensamentos. Eu sei. Que na vida a claridade se esbate, pequena, e que o ímpeto violento do frio me atravessa agora perpetuamente depois da seda, atrás desta concavidade do sono e do segredo de eu ser quase nada. quase nada nestas imagens vivas. quase nada no perfume das ruas. quase nada neste ciclo ligeiro que se encurva gentilmente para sem porquê se tornar eu. terríficos são estes dias ferozes que o mundo me queima, que a morte radiosa me toca soletrando apenas o meu nome, pétala a pétala. devagar como o movimento da carne, devagar como a luz.

domingo, dezembro 11, 2005


Eu amo estes meus dias quando na tua casa o sol ainda espreita assim, caído pela rua como um milagre suave e minucioso. É ele que doce tacteia à volta do chão pelas flores desertas que tal como eu também caíram na idade de uma pequena membrana de luz remendada e espalmada pelo soalho entardecido. Eu amo a luz que entra assim de mansinho como uma canção cintilante para o meio da eternidade. Eu amo estes meus dias de flores afogadas no silêncio extinto e tão raro destas tardes de inverno em que tudo é a luz desta ilusão abismada de haver vida e sonhos. No verde-mar do meu silêncio eu fico nu e todo o meu corpo se baixa por uma gravidez de um respeito sem tamanho enquanto na luz as minhas mãos fazem do sol uma criança luminosa que dança como um pensamento urgente e alto sobre a copa das árvores numa ramagem pulmonar e amniótica. Eu amo estes dias que nascem de verdade ao encontro do chão sentado na minha vida.

quinta-feira, dezembro 08, 2005


Quando fora de ti a cidade continua a cantar o tráfego, eu digo isto pelas minhas veias dentro. eu digo isto, comovido. quando se encontram profundamente as tuas mãos e as minhas eu sou o que morre contigo de te amar ao dizer-te. amor. digo para dentro do corpo. pela tarde, pelas mãos que entardecem enormes. e dizê-lo é sempre tarde, dentro da saliva, dentro de ser meramente humano dentro da angústia; e quando digo, quando digo isto sou um nome que sangra enorme enquanto se levanta como a lua menstruada. quando se levanta enorme. e agora canta, esta noite, para dentro das veias que ardem num nevoeiro tão frágil e cansado. que te atravessa fabulosa. eu digo. o amor para dentro das veias no teu cabelo. transparente numa carne protegida da salsugem do mar. no amor. morrer contigo. eu digo, comovido. amar-te. quando fora de ti a cidade canta as luzes e os pátios cantam as crianças. eu digo. aéreo e duro. a palavra. que é, amar-te.

domingo, dezembro 04, 2005

Entras pela minha porta dentro e trazes contigo o barulho terrestre de uma desordem que cresce conforme sobes escada acima numa taciturna força sísmica. É que no apuro de uma luz interna tu és a carne redonda que se estrangula por uma massa arterial de sangue nas ondas musculares que se volteiam quando, lenta, chegas a casa e te despes a contra-luz. Às vezes penso que és o mármore que reflui desde a garganta do soalho deste quarto à rua que se contorce talhada pelo escuro. Este animal que se abre ao espelho num crepúsculo de grandes cabelos soltos, este animal que arde entre as camisas que se arqueiam no movimento de se quedarem, este animal abundante que se move desde as omoplatas ao rosto, este animal é a minha respiração que treme e irrompe redonda e secreta na luz que rebenta através da chuva.

sábado, dezembro 03, 2005


Inspirados os dias repentinos, é de noite que se desapertam as minhas veias dentro de uma água negra e cheia de sonhos como grandes pássaros que se soltam frios para o meio do céu. Isto enquanto resplandesce o trânsito lá em baixo, ou a cidade ao longe. como um tigre que sem sonhos se aprofunda num movimento cinzento e florestado de um cimento imenso. e fechado. no meu coração há uma ideia que me lavra e se deslumbra como uma mulher num coral de nervos enrolados para a morte no meu corpo inteiro. Aqui, eu não falo com ninguém mesmo quando me arranco de mim próprio para o que é de alguma forma ser eu. para ser eu assim, desdobrado como um braço que se flecte sobre o chão doloroso e nu. numa fenda, de mim para mim abre-se então um sussurro e todo um quotidiano terrível brilha nos álvéolos desta casa torrencial. desta casa em turbilhões de memória na sucessão do tempo. porque lá em baixo, porque em mim irrompe aquela renda ou o leite pelos quartos justapostos numa loucura expelida pela força negra da água. pelos precipícios do céu. nos corredores, nas avenidas, na minha camisa que se apoia nesta espécie de luz que é pensar-te assim. assim enrolada numa ternura que encadeia. que se ateia. implantanda numa lágrima que podia explodir. que podia explodir. que podia explodir na dança de te respirar larga por dentro do tráfego doido do luxo e do espaço. e da arte. por dentro dos teus sonhos, fulgurando pela tua testa numa massa de uma carne muito frágil onde o dia se respira finamente, engolfado por uma doçura húmida como lá fora, à chuva, os passos passam numa indiferença aplicada e amorosa pelos dias e pela noite.

sexta-feira, dezembro 02, 2005