quinta-feira, junho 30, 2005


À noite ele era o excesso compacto e abraçado do escuro, a verdade espessa da terra negra num múrmurio fechado pela dor. Desespero imóvel, durante o escuro a minha casa é como a meia-noite numa photographia parada de horror ante a urgência esmagadora e surda de te desaprender para sempre, meu amor. Ele era como uma casa habitada por um ruído que crescia com o silêncio por dentro do espaço vazio, desabitado e definitivo. Som chumbo, tristeza sem nome, à noite eu sou um céu parado na normalidade das coisas, no rumor indiferenciado dos meus aquários deitados sobre o fogo da minúcia dos meus sonhos. Sozinho desaprendo as palavras e o meu rosto é como a certeza de um espaço negro, aqui misturado com a imagem rigorosa e verdadeira do escuro.

terça-feira, junho 28, 2005


O frio, às vezes é só o frio, aquele frio sem retorno, aquele frio cansado de acabar num lugar muito longe onde tudo se esquece de mim. Ao fundo do meu corpo, enquanto à noite me dispo para me deitar, oiço todas as vozes de um café lá em baixo de esplanada desfraldada para a rua. Aqui dentro é a luz que se espraia num rigor exacto de uma condição solitária e maldita. Às vezes é só o frio, mãe. É uma dor para dentro como um soluço, como um piano que repousa naqueles quartos pequenos e apenas com uma janela. À noite, deito-me então na cama e os meus olhos percorrem o branco fechado e amarelecido do tecto como um absoluto ignorado e final.

domingo, junho 26, 2005


afinal era ainda o mesmo, pensava. afinal era ainda aquele olhar de uma brancura enraivecida: um homem envelhecido, e no centro da face os mesmos sonhos por entre ravinas luminosas e azuis. à noite as ruas percorriam-lhe os ombros e tinha o mesmo corpo de sempre: viva penumbra, os meus braços são ainda como as ruas caladas nas manhãs misturadas de nuvens e de uma transparência distante como o peso da água nas pálpebras depois de um sonho. memória apagada, céu amplo, aberto, e tudo era ainda o mesmo: os meus sapatos, os meus gestos longos e gastos pela imobilidade daquela ternura que sempre me povoaram as mãos. devagar, ferro contra o ferro: e aqui, eu era como um animal retraído pelo fogo - à noite, retorno ainda aos núcleos silenciosos dos meus paraísos e com os dois braços caídos para diante o meu corpo é como um instrumento abandonado nas traseiras de uma casa ou de uma qualquer oficina ferrujenta. chego a casa, pouso os sapatos junto à janela, e tantas vezes esperei pelo a noite ser que no corpo da minha casa lançada à chuva nasceram humidades e bolores cheios de um minucioso estertor que, agora, hoje, contornam os pregos da minha cama, as dobradiças dos meus armários e todas as fechaduras vazias.

sexta-feira, junho 24, 2005


'Ulisses virava
muitas vezes a cabeça para o sol que tudo ilumina,
desejoso de ver o ocaso: pois só pensava no regresso.'

Homero, Odisseia, trad. Frederico Lourenço, XII, vv. 28-30.
depois de tantas noites luzir sem mãos
abandonou-se ao vento e
numa casa fechada
à espera de a manh ser
diáfanos eram os intrumentos que em si se tocavam sós
e frágeis




morreria o mar; talvez rasgado pela brutalidade com que tudo nasce: depois, depois: e nas curvas lentas da fome e da chuva miúda, morreria a própria fúria se lá fora não se tivessem agitado todas as árvores do mundo por ti: não sei que tempo vago atravessei, não sei dos dias de breve e febril ausência, não sei que ignoradas coisas perdi no sufoco de todos os livros se me queimarem nas mãos: tudo destruí e não sei onde desolado aprendi a serenidade das plantas


depois, era talvez o som das sombras à superfície de uma pele aquática e lento era o som, lento como uma folha quase branca: na suave absorção dos terríveis movimentos essenciais, agora podia de novo respirar nesta água, em cada curva húmida dos meus dedos

quarta-feira, junho 15, 2005