domingo, julho 31, 2005


Ao a manh'ser os dias chegam atrasados. Demoram-se primeiro nos meus dedos, para subirem vertiginosos aos nós das minhas mãos; chegam sempre depois, depois do silêncio, depois da doença debruçada no meu peito, depois do frémito da chuva apagada e esbatida na clarabóia do meu sotão. Ao a manh'ser os dias tornam-se lentos como projectores na água, ou como a luz submarina da televisão espalhada por uma cama desfeita e entardecida pelos meus ombros nus. Os dias atrasam-se porque se demoram a pertencer-me na chuva, nas largas curvas das primeiras poças de água cristalina deste Verão. Leves como uma folha branca que lisa desliza pelo ar, a chuva são os dias curvados para os meus braços enquanto todo eu me atraso coberto pela água que então se demora como as lágrimas. O grande círculo fechou-se como uma velha porta. Os celeiros foram abandonados às teias de aranha. E a vida, agora, é deitar-me a sul junto ao simples e alvo sopro das férias.

quarta-feira, julho 27, 2005


Dá-me por esta noite uma terra sem vento, meu amor. Dá-me por esta noite a carne de um poema, a canção ou a rua estreita por onde caminharei toda a minha fragilidade balançando os muros. Dá-me a água, o nascimento, a morte, todas as membranas que no meu quarto escuro vão luzindo puramente depois do temor durante a noite. Dá-me os teus dedos claros, os teus gestos como amêndoas bocejando azuis junto à linha da janela; deixa-me ainda aqui, dentro de mim incendiado no teu rosto desabado. Que todas as fontes sejam as próprias sombras que estremecem quando sobre elas te debruças: o teu rosto, o teu rosto, meu amor o teu rosto e toda a minha fragilidade doente, para dentro confundida, circun
dirigida como as estrelas para a memória de ti no clamor das noites entre as borboletas que se escondem.

segunda-feira, julho 25, 2005


Entre os torsos calcinados das mãos que se dobram pela minha, estéreis são os dias que em chamas se lançam para a neve do meu esquecimento sem palavras: embriagado por entre as luzes dos carros eu sou o pó, as sombras adormecidas na transparência rápida dos meus dias. Na ferocidade de me perder, pouco a pouco escondo o meu nome e escurecido divido-me nas sombras separando o silêncio e o fogo; escolhendo o que dividido, a minha cabeça faz girar ao balcão anónimo todo o bar e dentro da chuva, erguida cai lá ao fundo a música. Debruça-se o som, espalham-se as mãos, o som, e levantam-se os dedos para a carne líquida e sobre
posta nas bocas abertas para os buracos intermitentes das luzes e dos néons que explodem acordados junto à tua respiração recordada.

sábado, julho 23, 2005


As minhas mãos têm nomes que eu não entendo. Dorme a escuridão de lábios transparentes, e no imóvel fogo da luz desdobra-se mais um dia na minha mão esquerda. mão de mar, mulher, paixão. Outros dirão que as mãos são apenas minhas, que a paixão ou o mar é o que talvez nelas brilha; assim, elas são nuas como uma mágoa que me muda os lábios para as palavras que aqui se ergue do chão para uma terra calcinada e de trevas. Talhada assim a nudez, não há esplendor que de manhã não se demore no brusco ardor do meu olhar, nem luzes, nem animais alvoraçados pelo sopro vivo dos tormentos que assim cintile. Nada, nenhuma arte aqui se deita em cada amanhecer de uma outra letra. Nenhum relógio vos ouve, e todo o silêncio é como um caule que ao desabrigo da terra se ergue orvalhado mesmo nas mais secas madrugadas.

sexta-feira, julho 22, 2005


Verão são os dias em que o meu coração nos inventa recordando-te. Longe do crescimento das plantas já não transformo a seiva no azul da luz, e por entre a folhagem tão bela do entardecer, brilham ténues as almas vibrácteis dentro de duas minúsculas garrafas. À ondulação da relva, o pó substitui todos os teus passos e ao longo da água o teu nome não perece na minha voz. És quase alguém, diria; e enquanto a terra dorme na teia de fogos e fumos que lhe traça o corpo, eu, tal como o verão, respiro aos clarões e brilhos dentro de uma garrafa em minha casa, numa casa de janelas abertas ao acaso do pó, das mãos e da memória dos antigos dias.

terça-feira, julho 19, 2005


Lá fora, meu amor, o pó agita os teus dias. Todos os ramos das árvores caíram, e eu ainda aqui estou inventando o silêncio uterino e interior de um peso desolado no fulgor de uma ternura fechada. Nada me rodeia, ninguém me vigia e todo o suor do meu trabalho é-me inútil como o peso morto de uma neblina quente na penumbra dos arbustos que crescem sós. Ao fundo das casas, no meio da treva que cintila, terríveis são as coisas que me rodeiam pela noite fora, na ranhura dos lábios, nos quadris estendidos pelo ruído do sono; inextricáveis são os extremos recortados dos lençóis que desenham os meus sonhos enquanto ardem como avencas remordidas no perfume côncavo da minha pele. Em rugas de ternura, à tua falta, são agora eles que me desmontam e sujam para um pó que me cobre incompleto e adormecido na concha de um caracol perdido para uma fragilidade desconhecida pelas paredes. Oculto, eu não sou a face prematura das coisas que impossíveis habitam os animais murmurados pelas tardes assim inundadas de um pó que só no tempo se inventa, violento, na solidão dobrada por um cimento total e esquecido.

sexta-feira, julho 15, 2005


Deitados sobre os braços os meus bolsos pendurados são o lugar, o único lugar, onde as paredes anoitecem pela luz dentro. Ou a violência do sol, ou os ombros de musgo, não sei. Lentamente o meu casaco é como a face das aves que nascem à superfície do sono e nas pacientes tempestades se confudem com as bermas escuras dos céus. Lá fora a luz cereal amanhece, amanhece sempre, e eu estou acordado junto aos barcos quase inclinados num céu de mãos abertas.


Ninguém nas ruas feridas me mistura pelo tempo. O mais breve sopro floresce imcompleto e mal iluminado pela mutação secreta dos teus cabelos, meu amor. O tempo, o tempo, e ao entardecer o meu peito oscila nas sombras de amanhã. Nada me é essencial. Nenhum motivo de circunstância me move pela terra florida e alheia a toda a luz: no trabalho das vagas, infímas e lúcidas, as máquinas, os edíficios que por dentro me habitam, desmoronam-se nas sombras azuis dos dias de amanhã. Ardo, e todos os dias no tempo a minha memória dispersa-se vagarosamente p'las ruas de fechadas corolas.

quinta-feira, julho 14, 2005


Lá onde outrora eu sou ninguém, as máquinas desabitam-me o peito e todo eu sou uma janela-garganta escancarada para os dias mortos da minha cabeça; neste instante, se fosse uma cinematografia o centro da minha face seria todo um núcleo silencioso, obstinado e de uma sombra infinita. Através das janelas desabitadas, eu sou as casas que oscilam abandonadas e colocadas ao rumor do vento. Memória apagada, esquecimento de uma chave irrecuperável, as rugas em torno do meu olhar de criança perderam a raiva dos dias e hoje são lentas como à noite a neve cobria o teu peito de ternura. Todos os pássaros se calaram, todos os camiões partiram numa noite destrançada por um amor que ainda hoje noitarde nos murmúrios que em grãos de escuro florescem nos meus ombros.


Debaixo do a manh'ser há uma insondável e imóvel noite em ruínas; crueldade sem memória, a noite pode muito bem ser o meu rosto arrastado por um sono ferido e de uma brancura sem recordações. E depois, por entre o escuro abismo dos meus dedos, a luz torna-se lenta e impensada enquanto lá fora, onde longe o mar me dobra os lábios, as minhas mãos se volteiam nas chamas para uma inumanidade onde sofro as margens de uma escrita sem leitor possível. Disponho, coloco, introduzo, e aqui eu caio: enquanto são os meus olhos que escurecem e a docura da minha força deixa cair toda a ternura de uma mão aberta no silêncio. São corredores: os corredores correm dentro da minha cabeça, e o meu peito é feito de casas desabitadas por entre a névoa incendiada do a noite ser.

quarta-feira, julho 13, 2005

Debaixo do a manh'ser há insondáveis e frias roldanas que o perfazem até à luz. Eu, na verdade, não existo ou sou apenas o último artifício para a perfeição de um dia. Nenhuma lágrima me cerca, nenhum sorriso me anima ou ergue; sou volátil, imperceptível e impassível como um eixo axial integrado num organismo metálico equilibrado e queimado pelo gasto. Aqui não há ninguém, aqui estamos numa maquinal gruta de Polifemo e vogamos em direcção a uma ascética poesia da crueldade como através de Antonin Artaud o a manh'ser já então cantava. Neste teatro das máquinas e das próteses mecânicas do sentir, nenhuma personagem como eu resistirá ao tempo; e o disfarce da liberdade e da espontaneidade descobrir-se-á ser mera expressão do desenvolvimento necessário de um império metafísico há muito fechado e tendencialmente esquecido numa indisciplina da razão nítida.

segunda-feira, julho 11, 2005


Qualquer coisa, dizia sentado no chão enquanto as palavras se perdiam pela ternura triste de uma memória para sempre acorrentada no inverno das minhas noites. Longe do teu sorriso, o meu cabelo é aquela criança em crinas de cavalo que se lança às ondas do mar para morrer de uma tristeza radical e sem fundo. Hoje, no longo dossel alargado dos meus dias, os meus braços são o fim das tardes quando a luz se arrasta solta pelas ruas de Lisboa depois do cheiro frágil da chuva rigorosa e aplicada de ser toda a solidão do mundo. Nenhum abraço me segura, nenhum calor me suporta e eu, respirando no abraço último do sol, sou os gestos bocejados e vegetais de um pássaro caído no silêncio de um chão sem tempo.

sábado, julho 09, 2005

Às sextas-feiras preferia morrer como uma baleia lançada à costa. Sempre fora assim; chegavam as sextas-feiras e ficava triste por não a ver durante o fim de semana. Eram dois dias sem te ver. Chegava à cama e deitava-se de barriga para cima à espera que o sono o vencesse. Brincava com os dedos, uma mão na outra e ficava assim de olhos muito abertos e vivos para o escuro. Era sexta-feira e faltavam dois dias para te ver. Aos sábados fechava-se no sotão e afundava-se na luz meiga que lhe tocava os sonhos. Afastavam-se todos os ruídos da cidade e às vezes ouvia apenas o chiar de uma porta ao longe ou uns passos no soalho imóvel. Inclinava-se o tempo, e nas cordas de luz esticadas pelo silêncio, os meus olhos eram clareiras de florestas por te esperar durante dois dias.

sexta-feira, julho 08, 2005


Os lençóis da minha infância, os lençóis da minha infância são o lugar de todos os pianos dentro dos meus olhos. O lugar onde abria os braços e de manhã era feliz como um fim de tarde junto ao rio com o meu avô. Feliz? Começo hoje a tê-lo sido; começam hoje os últimos dias em que a terra se estende infinita como os meus lençóis de madrugada enlevados por uma música que se perde ao segurar-me como um barco sem mais noites ou silvos de um esquecimento feito de longe. Nenhum martírio fechado, nenhum homem cansado caminha por entre as voltas brancas dos meus lençóis desfocados como a minha memória. E à noite, também nenhuma palavra me cobre como o céu, e nenhuma tarde perdida se esquece das flores dentro dos meus olhos abertos ou dos meus sapatos descalçados junto à cama. Não sei não sei talvez os meus lençóis estejam ainda somente na minha imaginação como um tempo de inocências dentro dos pianos abertos nos olhos lavados pela infância dos meus lençóis.

quinta-feira, julho 07, 2005


Dividida toda a declinação dos meus ombros pela noite, cai o silêncio nos escombros das minhas pálpebras e na minúcia das minhas ruínas; até ao voltear dos dias as minhas asas então misturam-se escolhendo e separando os ramos caídos na luz espalhada pela quietude da minha boca. E enquanto respiravas caía o azul escancarando os pássaros e as árvores que amei junto à morna luz das folhas que agora lentamente regressam junto aos meus animais de sangue. Entornados na luminosidade marmórea das minhas mãos, os cenários animais são as ruínas dos meus sonhos, e o som que me acende a boca quando sobre o vento eu me lembro do teu respirar são as pálpebras leves, as pálpebras lavradas do que dividido se abria no teu rosto para os lábios do teu céu.


E depois reparei que o silêncio solar das minhas tardes mágicas trazia nos braços o canto de uma felicidade mais vasta e completa. Uma luz maior que o teu interior; e sim, desta vez a minha vida não se escreve sozinha contigo e a noite não é como o peso de uma pedra. Nenhum sonho me anoitece, meu amor, e todos os dias são uma viagem ao teu sorriso onde eu ainda durmo circunscrito pela minha pele. Nenhum barco me veio buscar ou salvou, nenhuma pétala perfumada me chegou às mãos na corrente demasiado forte da vida. Os meus dias esquecem-se, e eu sou os olhos fechados na aragem estendida do horizonte tornado aquela água que convida todos os raios de sol.

terça-feira, julho 05, 2005

Chego a casa depois do trabalho e sento-me na cama. Vivi tudo isto como se nunca existisse e no entanto ao escrevê-lo agora é como se o recordasse. Na lenta reconstrução do teu rosto as palavras incendeiam-se e durante a noite o que nelas se oculta renasce por entre os meus ossos, tendões e músculos. Depois de sentado no centro do quarto sempre de luz apagada, movo-me através do centro de desordem em que a minha casa se tornou. Acendo o esquentador e vejo, sinto e observo. Através de uma pequena plataforma de luz espalha-se a imobilidade total que preenche de intensidade a vida submarina da minha fronte fechada aos sonhos. Assim, eu desapareço vivo pela divisão agora corpórea e tranquila. E chegado aqui, depois do mar, depois de só na tua boca respirar, continuo a pensar que nada disto é real.

domingo, julho 03, 2005


Ninguém disse que o futuro não viria. E assim eu que às vezes sou a criança sem história, a casa abandonada no fundo de um inverno, o estrondo bruto de uma porta que se fecha ou tão simplesmente o abraço circular e silencioso de uma pulseira em torno de um punho, faço de mim o dia presente, a hora fulgente de uma tarde sem destino ou palavras. E aqui os pensamentos semeados na escuridão estendem-se pelo nu areal espraiado nas margens da minha tristeza e eu fico de olhos abertos para o céu numa solidão agora povoada e luminosa. Lá longe eu sou a brisa que descobre o rosto dos meus amigos, aquela água salgada onde as gaivotas morrem, a última areia submersa pelo silêncio do mar.

sexta-feira, julho 01, 2005



Por isso limito-me a descrever as minhas ruínas cobertas com séculos de neve. A minha terra é plana e o meu peito está todo coberto de segredos que fazem nascer o sol de manhã. A verdade é uma casa quente que me habita pela cabeça e não pode ser escrita nem apreendida por qualquer texto-urdidura. De pé, de manhã, o sol lá fora é o meu filho menino que ouve esta história enquanto eu mesmo coloco estas photographias uma a uma diante dele. E no entanto nada disto existiu. Ontem o telefone tocou, bateram à porta e não, não era engano nem qualquer pessoa. Na luz, nesta luz ficaram sós, as palavras, os teus olhos meu amor, os teus olhos totais, vivos e límpidos.