sexta-feira, setembro 30, 2005


Onde eu habito, faço de mim as cordas de uma viola e os meus dedos reconstroem uma espécie de luz na memória do teu sorriso. Chegado a casa depois do trabalho, ninguém sabe quem sou e eu próprio me desconheço em tudo até ao final do meu círculo: em mim as sombras e penumbras da minha casa são de novo totalmente minhas numa sabedoria quase compacta e final. Bem sei, bem sei que não tenho saído de casa e que nada mais faço senão pensar tudo o que me rodeia. Acho que as coisas me falam palavras surdas, compactas como a espessura das imagens. Se for bem ouvida, uma toalha nua, uma toalha nua e longe de um excesso abraçado poderia dizer-te como agora me desaprendo para ser nada de manhã. E que para me fechar nas minhas mãos sou como uma rosa que te morre ao contrário dos dias. Sou como uma luz que taciturna à entrada para uma candura sem nome se perde despedida pelas ondas da escuridão.

quinta-feira, setembro 29, 2005


Ninguém. Venho almoçar a casa e tiro uma única fotografia. Ninguém. Debaixo do cimento das coisas cai em mim o peso dos dias. Interna ao silêncio, desolada, a penumbra mistura-se com a luz e eu sou o fundo de um quarto, de uma sala ou de uma casa. Vigiados na treva que cintila, os meus dias perdem o fulgor das fontes, dobram-se em rugas de ternura e adormecem no que me rodeia. Ninguém. Ninguém me rodeia nas coisas que me habitam e os meus dias crescem sós.

quarta-feira, setembro 28, 2005

sábado, setembro 24, 2005


Através da janela do meu comboio a minha terra cheira ainda ao feroz trabalho do sangue batendo no solo. Sem granito os meus dias acordam no meio da cama, no centro das minhas tardes. Levanto-me no ar, na folha lisa dos quartos que luzem sem razão. Visto o casaco. Saio cá para fora; tenho o meu corpo cravado e rasgado pelo esforço teimoso de lutar por mim. Saio cá para fora e no comboio a luz macia brilha como uma pétala nas minhas mãos ainda de rocha. É finalmente Outono, digo, quase em voz alta; e como que multiplicando um gesto imperceptível, um só daqueles que trago das regiões montanhosas de onde sou, fecho o casaco negro do meu peito e desprendo as folhas dos caules das árvores estreitas que caminham nas ruas. Dias. A minha vida são dias. Começou o frio e todas as minhas canções descem aéreas, soltam-se do barro quente para a breve confusão das folhas musicadas pelo chão.

sexta-feira, setembro 23, 2005

sexta-feira, setembro 16, 2005


Noite após noite, de madrugada o metropolitano leva-me para longe. Nas inúteis paragens suburbanas, pelas janelas abertas ou através das ruas passsam estradas e para lá de mim há cidades alargadas no céu cinzento e calcinado. Enlaçado na chuva ateia, perdido por todos os dias te esperar para jantar avistei uma fogueira para norte e lá vou eu: é quase hora de partir, de voltar para casa, para uma esquina esquecida e de água habitada pelo cansaço numa qualquer perícia anoitecida de sonhos.

terça-feira, setembro 13, 2005


'«Diz-me, peço-te, onde pretendemos chegar com todos estes nossos trabalhos? Que procuramos? Porque lutamos?» Disse isto, e perturbado pelo parto para uma nova vida, voltou de novo os olhos para aquelas páginas: e lia, e transformava-se interiormente, e a sua alma despojava-se do mundo revolvendo turbilhões no seu coração enquanto de vez em quando gemia. «Porque padecemos? Que é isto? Que ouviste? Levantam-se os que nada sabem e arrebatam o céu, e nós, com as nossas doutrinas sem coração, eis que nos engolfamos na carne e no sangue...» O tumulto do coração levara-me para lá, onde ninguém impedisse o violento combate que comigo mesmo travava, até que findasse, da forma que tu sabias, mas eu não: eu apenas enlouquecia, sem perder o juízo, e morria sem perder a vida, conhecendo o que de mal havia em mim. E no entanto estava preso. E tu instavas comigo no mais íntimo de mim mesmo, aumentando, com severa misericórdia, as vergastadas do temor e do pudor, de modo a que eu não desistisse mais uma vez, e não se quebrasse aquela mesma cadeia pequena e frágil que tinha subsistido, e recobrasse forças e mais violentamente me amarrasse. Dizia a mim mesmo, dentro de mim: «É agora, é agora», e com estas palavras já me encaminhava para a decisão. Hesitava em morrer para a morte e em viver para a vida, e o próprio momento em que havia de me tornar outra coisa, quanto mais perto estava, tanto maior era o horror que me incutia; mas não me empurrava para trás nem me repelia, mas mantinha-me suspenso.'

St. Agostinho, Confissões, livro VIII, trad. de Arnaldo Espírito Santo, mudado.


As pálpebras. sente os meus dedos aqui. ouve a minha mão estendida numa sala mal iluminada e ardida. Onde existes? Rosa, rosae: declinou-te o tempo? Ouve, esquecendo o tempo, o dia, a noite, o último espaço vísivel entre os lábios dos amantes. Onde existes felicidade de mil ardis? Ouve-me, movendo-se, batendo as mãos enquanto me lês. aqui eu. não estou.

sábado, setembro 10, 2005


Dentro de si, todos perguntavam como seria possível vir a ser feliz numa outra espécie de vida ou sonho. Seria preciso mergulhar as mãos na terra ou partir para longe numa interminável metamorfose? Onde estaria a felicidade? Detrás, num fio de voz vindo de si próprio, Isabel murmurou baixinho com um nó na garganta:
- Tu sabes que não podes...
Ele abanou a cabeça e com um sorriso virou-se para o sol.
- E se sem o sabermos já o somos? E se começarmos hoje a tê-lo sido?


Deitou-se de pele junta aos lençóis longe de sua casa e perdido para sempre. No fundo do quarto, porém, continuava a chamar por ti murmurando líquido. Fechou os olhos quase no escuro e por momentos, sorrindo no esplendor de um sono crescente, pensou que tinha finalmente encontrado alguém que poderia bem ter sido ele próprio; assim era o poema sem fim num escritor sem palavras: contemplando o tecto, as paredes e todas as paisagens do interior do seu quarto eram como um enorme silêncio de pensamento que cruzava os corredores numa dor mortal, numa casa imóvel e aberta para um medo sob a largura das cidades.


De noite, quando eu morrer, estarei aqui feito de farrapos e búzios. Fora das arestas frias nas esquinas, sobre a noite curvada nas estrelas, no teu cabelo ou nos teus ombros, folha a folha, eu serei os dedos que te adormecem viva, por dentro fechada como beijo sem ninguém. Quando se resumirem rápidas as noites junto à morte, tu deitarás uma cor sobre o mundo num gesto que durará um dia. Quantos verões aí se perderão junto às janelas durante a noite? E no entanto, aqui, meu amor, aqui tudo é o teu rosto, aqui tu és uma pedra branca e nua que escorre às golfadas negras e cheias de flores para dentro da minha boca.

sexta-feira, setembro 09, 2005


Em concha surge o teu corpo impalpável pela sombra. Intacta, mão, mar, mulher: tu és dentro do meu coraçãoo todas as intocáveis mulheres que se derrubam inclinadas e assustadas junto às árvores que flutuam nas margens da minha memória. Que abraçadas a derrubam num inverno que se escreve assim, no silêncio vigiado da pele. Abraçadas: mão a mão, mar, mulher, crepúsculo-mulher deitado suavemente na transparência da superfície de todas as noites brancas; onde existes senão na chuva que prematura se adivinha nas nuvens? Criança neblina que em estrela desliza adormecida nos pêlos raros das mulheres, o meu amor, rodeia-me no meio da penumbra.

terça-feira, setembro 06, 2005

Hoje de manhã ouvia-te devagar na cidade.


Quem em ti arde, sabe no coração a dor do fogo lançado ao meu silêncio cimento de uma noite acordada em cidade e estradas sem fim. Dentro da fúria dos grandes animais soltos para o sangue, a mulher que se move no ar animal dança no centro do fogo com o rosto iluminado; e se te vejo assim, no centro musgado da noite, na violência extrema da saudade, eu sou a solidão esquecida dentro do calor, junto ao sol ou na concavidade dos teus ombros golpeados através das paredes cortadas ao vento. Dentro do meu peito, quando em mim cresces na madeira ardida dos teus dedos, acendes sem saber com o fogo as pálpebras que batem nos meus ombros perdidos para a noite que murmura; e se te vejo assim eu só posso dizer o tempo, que se, move, no fogo das tuas mãos.

sábado, setembro 03, 2005

sexta-feira, setembro 02, 2005


Os meus dias caminham para serem outros. Detrás da minha cabeça já quase não falam os mesmos; e assim os da meia-noite perpétua fecham-se como conchas perdidas para um cristal lavrado nos peitos de uma outra escuridão inútil. Enganado o tempo, beijaram-se os segredos nos gestos longos de uma água sem sonhos e numa pirueta, ao descer a noite, nenhum dia havia para dizer nas pequenas palavras ou sequer nas maiores: chego cansado na separação dos minutos, e lento todo o meu corpo soletra devagar e inteiro o teu nome, meu amor.