quinta-feira, janeiro 26, 2006


- Mas não fales, não faças barulho, ouviste? Aquilo que vais ver é o meu trabalho de muitos anos. O menor ruído pode destruí-lo.
Bastian acenou que sim, e saíram da cabana. Por trás desta havia uma grande torre de madeira e, por baixo, um poço,que conduzia verticalmente às profundezas da terra. Dirigiam-se para aí, atravessando a neve ao a manh'ser. Bastian viu então as imagens que estavam colocadas sobre a neve como se estivessem incrustadas em seda branca, quais jóias preciosas.
Eram placas muito finas de uma espécie de mica, transparente e colorida, de todas as formas e tamanho, quadradas e redondas, fragmentares ou de formas geométricas, algumas do tamanho de vitrais, outras pequenas como a miniatura da tampa de uma caixinha.
Essas imagens eram enigmáticas. Havia figuras que pareciam flutuar num grande ninho de pássaro, burros com togas de juízes, relógios que se fundiam como queijos cremosos, ou ainda bonecas articuladas em praças iluminadas onde não havia ninguém.
Quanto mais passeavam ao longo das imagens, menos Bastian compreendia o seu significado. Só percebia uma coisa: havia nelas tudo o que existia, se bem que por vezes numa estranha combinação.
Caiu o crepúsculo sobre a extensa planície nevada. Voltaram para a cabana. Depois de ter fechado a porta, Yor perguntou em voz baixa:
- Reconheceste alguma?
- Não - replicou Bastian.
O mineiro baloiçou pensativamente a cabeça.
- Porquê? - quis saber Bastian. - Que imagens são aquelas?
- São os sonhos esquecidos do mundo dos Homens - explicou Yor. - Depois de ter sido sonhado, um sonho não pode desaparecer. Mas quando o Homem que o sonhou o esquece, para onde vai? Vem para aqui. Fica enterrado nas profundezas da terra. Quanto mais fundo se cava, mais espessas são essas camadas. Toda a fantasia assenta sobre alicerces de sonhos esquecidos.
- Também lá estão os meus? - perguntei eu com os olhos abertos, sentado no frio vazio junto à janela. e entre o vidro e a rua, entre o frio desta dor anónima de eu ser os meus dedos roídos pelo frio do espesso esquecimento, apareceu o rosto do mineiro iluminado pelos reflexos da minha neve. Yor acenou afirmativamente.
- Claro. Claro que estão. Estamos todos.

Michael Ende, A História Interminável, cap. Y, mudado e adaptado.