sábado, julho 29, 2006



Durmo todo o dia e pouco me importa o frémito do Verão. Ao fim da tarde, no verde escuro de uma sala secretamente deitada sobre o cansaço, nasce na luz uma janela que se ergue sobre a parede. Não tarda nada é vez de cair a noite, parece dizer na fala própria das janelas. Sem nenhum clamor os meus lábios fecham-se sobre os olhos. e o cansaço secreto de uma janela. invade-me. o coração redondo como um pássaro fechado numa canção. deitar-me: tão somente. adormecido. deixado aqui. invadido. deixa-me aqui. adormecido. porque pouco me importa. o dia.


Apareciam-lhe imagens queimadas pela luz. arrasadas por um destino sem termo. apareciam-lhe as imagens. aquelas. aquelas cujas asas enormes se perdem num céu nocturno. que canta as quatro da manhã no balcão de uma cozinha. que boia supensa junto ao cansaço. ao cansaço das imagens. ao cansaço das palavras. ultimamente creio que é isto. eu sou o cansaço das minhas palavras, desta massa escura na rigidez da carne que imagina lavrando palavras por dentro do tempo cheio do horror de ser. de ser isto. de estar aqui. destas imagens me assaltarem noite fora. imagens queimadas na luz. palpitando palavras luminosas na linguagem. e eu. eu sou o cansaço das palavras. um clima atroz. um céu nocturno atravessado por lentas aves numa multidão de asas tão lentas como as palavras. porque as imagens. se aprofundam em mim. e pedem-me. mais palavras. mais palavras. queimadas e escritas pela luz.

quinta-feira, julho 27, 2006


'Partiram no navio e chegaram a uma outra ilha, onde o navio encalhou. Efectivamente, tal ilha era pedregosa e sem vegetação, com poucas árvores e sem areia nem praia. Passaram, porém, a noite em oração e em vigília fora do navio até de manhã. Depois, colocaram uma marmita ao lume e ela começou a agitar-se em cima da ilha como se fosse numa onda. Os irmãos, por sua vez, puseram-se a correr para o navio. Até o próprio abade os puxava para dentro. Deixando tudo o que tinham levado para aquela ilha puseram-se a navegar. A verdade é que a ilha delizava pelo oceano. Mais que isso; podiam ver o lume a arder a mais de duas milhas. Então S. Brandão disse aos irmãos: 'Não vos assusteis, pois Deus, esta noite, revelou-me em visão o significado deste acontecimento. A ilha que vedes não é uma ilha, mas um peixe. É o maior de todos os animais que nadam no oceano, procura a cauda para uni-la à cabeça e não é capaz em razão do seu comprimento. Tem o nome de Iascónio.''

Navegação de S. Brandão nas fontes portuguesas medievais, ed. crit. de Aires do Nascimento, 10.

segunda-feira, julho 24, 2006


Será que amanhã te lembrarás de mim? Será que ter sido o teu porto de abrigo me bastou para que pudesses sobreviver à morte? O principezinho mal tinha começado a sua jornada. Quando aqui chegou sorriu, porque ninguém lhe tinha dito que as cidades eram lugares amordaçados pela necessidade colérica dos dias. Ainda assim o principezinho sorriu. virou-se ligeiramente de costas e sem dizer adeus, caminhava outra vez tacteando pelo escuro dos dias arrasados. Será que amanhã te lembrarás de mim?, perguntava. Será que as distâncias podem ser trespassadas por punhos de sangue amigo? Breve é a vida em nós, disse baixinho o rapaz de corpo magro. Uma só linha nos liga, uma só vida nos atravessa, porém breve é o tempo do espírito. O pássaro aninhou-se, então, pelas noites fora nas mãos de uma criança. Todos os dias, de hora a hora, dava-lhe de comer como se tudo ali estivesse. como se todo o universo ali estivesse, vertido, concentrado e suspenso em duas patinhas pequeninas. em dois olhos negros como os de um cavalo. em duas asas resumido. E no entanto, perante o maravilhoso de haver um poder haver ser, perante o espanto de alguma coisa poder, e bastava-lhe isso, os olhos do principezinho choravam. e nos restos da pobreza um sorriso largo brotava-lhe das mãos para os ombros e rutilante abria-se nos lábios. Assim era a noite. numa canção arrancada aos sonhos.

domingo, julho 23, 2006


porque a esta hora não sabes ainda que estou aqui. debaixo das tuas mãos, protegido. bosque posto à orla da cidade, fecho os olhos e do denso corpo à guerra habituado desprendo-me como uma nuvem larga o céu para os deuses. eu nem sei onde me faço, onde me construo ou me sento afundado no corpo verdadeiro do vinho e da carne que ainda aqui estão. perante mim. fecho os olhos e há todo este céu azul que quer acordar dos meus olhos. são onze da noite e as minhas mãos tornam-se hábeis na luz que começa secretamente a sussurrar no quarto onde o meu sono habita. imagens. no imo das imagens desaba a minha cabeça desatada aos flocos misturando o fumo, os pássaros, o som, as estações, aquele trânsito limoso ao vento num desamor rápido que deita sobre as calçadas de Lisboa. e eu impassível. aqui sentado, como se fora de mim eu fosse outro. mas por dentro. de olhos abertos para uma espécie de céu reconstruído, abrindo uma espécie de névoa quando se me quebrou a alma numa viagem muito antiga, Ulisses era esta luz que se misturava num regresso para ser ninguém. fugindo do grande abismo do mar quando entre ele e a terra havia a distância de um só grito, o principezinho ouviu em sonhos o barulho retumbante do mar contra os rochedos. não haviam portos ou promontórios, nenhuma enseada o poderia abrigar e contra tudo rebentavam enormes ondas que enfraqueciam os pensamentos e o coração daquele mortal já tão fustigado pelo caminho do sofrimento. à medida que nadava chegou então a uma espécie de terra que alva era em sorriso reconstruída. não tinha rochas à sua volta e estava mais abrigada do vento. assim, Ulisses era salvo em sonhos: jazia sem fôlego, incapaz de falar, incapaz de se mexer tal era o cansaço ingente. mas agora, agora exausto deitava-se de olhos fechados com uma nova confiança. uma onda o tinha levado para a terra dadora de cereais e desta vez, debaixo de dois arbustos nascidos da mesma raiz, debaixo de uma oliveira brava e de uma mansa, debaixo das tuas mãos. o mortal sentia que estava menos exposto ao frio e às feras selvagens.


a esta hora não sabes que estou aqui. que estou aqui por dentro de uma memória que se esquece nas palavras. a esta hora regresso a casa. e passo a passo na velocidade da memória quando as feridas se abrem ao amanhecer, os passeios pelas ruas estão imóveis. os restaurantes já fecharam. os frutos desapareceram nas árvores. e entre as minhas mãos desperta esta imagem. onde estás tu. dentro de ti mesma. no teu sorriso reconstruído como um animal prolongado ao extremo no som; o som debaixo da pele, debaixo dos candeeiros. e nós. enlouquecidos pelo vinho que se desprende das mãos. a esta hora não sabíamos ainda que eu estaria aqui. que passo as mãos sobre o rosto e que agora, me esqueço. que na sombra dócil dos dias me apareces assim como a eternidade ou o coração. digo. a esta hora não sabes. ardem perdidas as ideias e ninguém me escuta. a esta hora. que estou aqui. por dentro. há ainda o teu sorriso, este tempo tão mortal e sangrento como os momentos perante as imagens. as tuas. as tuas que não esqueço. as tuas também, sabias?, sim, as tuas. mais tarde. mais tarde ainda porque a esta hora tu não sabes. ninguém sabe que eu me divido sobre os pulsos na idade e escrevo batendo os ombros nas paredes. nas cicatrizes esticadas no silêncio e ainda quentes. no intervalo dos dedos de tudo quanto esqueço. porque estou aqui. estou ainda aqui sentado convosco. e na palma da minha mão há uma flor. sem que saibas. uma flor que na boca da memória é de um perfume que se entorna dizendo todos os vossos nomes. sem palavras. fechados. ou escritos. nas minhas pálpebras.

sábado, julho 22, 2006


Naquela noite o meu pai entrou em casa com um sonho nas mãos. ligeiramente suspenso, meticuloso e minúsculo na fragilidade animal de uma velocidade cheia de um amor imenso. porque era um amor imenso. era uma luz apavorada na carne húmida de um animal e uma paixão do tamanho de uma cidade, de um rosto plácido e paciente na terra ou de uma colina como um lento vestido ao vento. naquela noite o meu pai trazia um inexplicável pássaro ateado ao fogo do meu espanto na palma da minha mão. ainda hoje, ainda hoje quando durmo e se mexem os búzios de veludo nos navios dos meus sonhos arrastam-se o mar e as cidades pelas tardes e ruas dentro. ainda hoje, quando durmo permanece esta imagem. esta imagem que nem a terra ou o sal devora. um pássaro. um fogo inexplicável que abriu sobre mim um céu que ainda hoje aprendo. porque era um fogo pequeno, era um pequeno e suave fogo, penso. um pequeno fogo como uma sarça que ardia e se renovava nas tuas mãos, pai. hoje digo: nunca mais. e penso: jamais podererei esquecer aqueles passos apressados pelo soalho dentro, a porta que ainda se fechava. e eu a ver-te. neste momento, no intervalo aberto pelas palavras. e eu a ver-te pai. trouxeste-me aquele pássaro. um pássaro perdido, um pássaro encontrado. e os meus olhos quando sem dormirem se abrem no espaço ausentes e pensam oscilando na ternura, ainda hoje exalam terras movediças debruçados naquele momento aberto num gesto hoje talvez embaciado pela história. um gesto de animais que cuidavam de animais no calor dos dedos. dizendo, amo-te, amo-te. amo-te no rumor da vida. por sermos irmãos no calor das bocas. da comida que se misturava no corpo. tão frágil. naquele ser que num só sopro, num instante iluminado é ainda hoje o mesmo ser. um só lugar. tão dócil.

quarta-feira, julho 19, 2006

terça-feira, julho 18, 2006


ou então eram aqueles violinos vindos de dentro do amor. do lado de cá da noite, a luz aspira ainda o calor dos prédios e lá longe, no lastro distante dos céus, quando a luz se esquece de ser dia e se despem as camisas, chego junto à janela de água que escorre parede abaixo junto ao meu rosto. não sou colhido pelo vento. não flutuo nas nuvens e quando devagar pousa a noite nos autocarros que agora adormecem todo eu sou humano dentro deste sossego e visto um pijama tão igual e empacotado como os de todos os outros. nenhum grito, afinal, me escreve. talvez eu seja este escuro parado no meu rosto. ou esta voz rouca e sussurrada no rumor cintilante desta terra coroada de noite. após noite. por dentro do amor.

quinta-feira, julho 13, 2006


E eram aqueles gritos. Aqueles gritos naquela cidade desconhecida. onde a luz morria. incompreensível e calcinada. inútil numa solidão desolada. tão vasta como aqueles gritos. que ardiam. que ardiam sozinhos em palavras incompreensíveis em torno dos ossos abandonados ao chão. num instante. não havia sombra. nem cidade. e deitado o coração na loucura enternecida do amor eu dizia baixinho. este é o meu testamento. não há aqui mais luz do que isto. este é o meu testamento. nenhuma desolação me cerca, nenhum sonho, nenhum abismo, nenhum pássaro. nenhuma ferida formada na pureza dos rostos. nenhum grito, nenhum grito. só aquele. era como um punho fechado na luz tão cega daquela guerra. agora. agora vejo. eu chego aqui, e tenho a roupa presa às silvas. eu chego aqui e sou esta parede. entreaberta no desalinho rigoroso das palavras na minha boca. eu sou esta parede, repito. ou as árvores que clamam lá fora pela chuva. pelo som da chuva nos baloiços metálicos da minha infância. aqueles gritos. por dentro. como qualquer coisa terrível. como um animal lançado ao inverno, ou como uma margem eterna. que rasgada se abre em ferida desde a sua origem até ao seu fim. o mar. um mar de gritos. como o canto de um pássaro ao longe. branco. absorto. e o que eu perdi. abano o teu corpo ao sol e digo: o que eu perdi, o que eu perdi viagem fora, mãe. aqueles gritos. daquela cama. aqueles gritos sob a pele. e os sonhos que ardem. atordoados junto à porta do quarto enconstada. os sonhos que eu perdi naquela noite. noite de noites tão vastas. tão vastas dentro dos gritos e do grito. daquela noite.

terça-feira, julho 11, 2006


Em pleno coração de Sesimbra nasce ainda esta praia em laços largos de água destrançada. A praia, lembro-me bem, começava cegamente murmurada na sombra das rochas. Descia abrupta, sem avisar, sem sequer convidar alguém ou sequer ninguém. Era um lado escuro, uma ternura embotada pela luz só perfeita entre o corpo nu do areal inteiro, o mar e as pedras que se precipitavam nele como um cavalo esbaforido em neve ou em chamas. Água de uma luz tão sonora como as minhas lembranças, areia tão branca como a nudez em mosaico daquela impensável mulher dobrada e deitada sobre as amarras do amor de um mar, esta praia era um dos três locais que sem querer selava o nome sofrido do esquecimento que então o principezinho atravessava. Ali ele tinha sido um homem de sorriso. Disposto o corpo ao breve incêndio das marés azuis, nenhum barco, nenhum outro homem sofria com ele a dor daquela água, o sopro das memórias que batiam no convés envidraçado daqueles ombros. Disposto à altura da água. da água então pela cintura. e depois da força, caminhava como um cavalo muito acordado e escurecido junto ao céu e às rochas. porque era preciso ter força. porque era preciso força, dizia numa voz muito loira e baixinha o principezinho.

segunda-feira, julho 10, 2006

terça-feira, julho 04, 2006


depois. depois o crepúsculo nos meus olhos. e por dentro da noite, perseguido pela luz, dedico-me ao lento lavrar dos meus sonhos. se eu pudesse atravessar os bosques da memória, penso. ah se eu pudesse atravessar os bosques da memória total dos meus dias. chegar aos líquenes presos na casca das mãos. pudesse eu pensar a erva que balançava naqueles campos que perdi nos cabelos da minha mãe. pudesse eu atravessar imagem a imagem. pudesse eu regressar ao centro de mim mesmo e minhas mãos deixariam de ser este muro escuro. escrito no silêncio espesso lavrado pela chuva. mas continuou a chover. é verão e lá fora mas continuou a chover. e agora, agora passo esta mão pela luz. sob fibras transparentes. penso como foi possível. como foi possível uma terra chamada rosto, como foi possível o meu nome lavrado sobre a chuva. sobre aquela chuva indecifrável. sobre aqueles ramos, diante da água imóvel. diante daquelas margens. como foi possível, como foi possível o silêncio do destino no esquecimento. neste esquecimento.

segunda-feira, julho 03, 2006

domingo, julho 02, 2006



e no coração as bandeiras desfraldadas ao vento. e a malta que grita. é golo, é golo é golo. o mesmo mar. os mesmos pescadores. e os braços que se me arrepiam. a rádio que grita. a tsf. sempre a tsf rádio jornal. aquela voz num sangue desbragado perdido ao vento. o jogo. o abraço do meu pai. o furor. o calor. e tudo isto aqui, também, diante do mar. as bandeiras desfraldadas ao vento. e a malta que grita. a festa em furor. é golo é golo é golo, é golo, é golo de Portugal. é golo de Portugal. o teu piano por dentro. um piano lento. e eu vejo tudo isto em câmara lenta. um piano que sobe. naquela voz em anéis de fogo. naquelas gargalhadas desmedidas. e por dentro daquele ser, a multidão enfunada na tua voz inesquecível. que bonito é. e de novo as bandeiras desfraldadas ao vento. e a malta que grita a festa. é disto que o meu povo gosta, dizias com todas as tuas veias. e de novo aquele aperto no peito. e o meu pai a ferver no sofá. e os punhos fechados. aguenta coração. aguenta coração. tal é o furor de ser o jogo, este furor de amar, de ser esta paixão dura e árdua no excesso de ser português. e poder chorar, e poder ser muitos. e poder ser toda a gente em toda a parte. e poder ser nada. e poder sentir tudo em toda a parte.