sábado, outubro 28, 2006


Quando se extinguiu a verdade? Quando fiz de tudo imagens? Onde está o princípio deste haver princípio, da terrível verdade que é tudo ter esquecido por simplesmente julgar haver um começo? A cidade não estava límpida. A memória era um lugar sereno e rodeado de árvores mortas. Lá fora, incessante, o vento, batia nas vidraças rasgando os caminhos através do ar e das ervas. Bastian dormia pelo dia fora na grande noite do mundo. Se acaso se levantava, a própria pele, no trabalho do sangue, fazia de si mesma o pavor inteiro de estar acordada e branca junto à tempestade que varria o desabrigo da alma daquela criança. Dormia. E no mundo podiam vibrar as linhas do horizonte na surpresa das manhãs pelos corredores iluminados do tempo que a voz pequena daquele minúsculo corpo se deixava cair na ignorância do vento respirando apenas o fundo das coisas sideradas pelo terror. Em sonhos, contudo, a rapozinha fazia questão de visitar aquele ser agora tão frágil e sombrio: - Existem duas espécies de pessoas, dizia abanando a cabeça. - Tu és grande, Tu és grande, repetia em voz baixa. E recomeçava caminhando em seu torno; - Existem duas espécies de pessoas: as que não sabem ser felizes e são-no sem no entanto o saberem, e as que sabem ser felizes e não o são por nunca se poder saber e ser em simultâneo. Tu pertencerás a esta última. Confia, confia em ti, sussurrava repetindo: Tu chegas ao outro lado, confia. Chegarás ao outro lado para me dizer uma palavra, a única palavra. Entretanto e ao sabor da ameaça de luz que penetrava a janela, a criança deitava-se ora como um vento disperso ao sabor da memória. ora como uma luz de lâmina que se limpava por entre os cortinados e a chuva. entreabria os olhos e a boca. surda. e julgando que tenso e imóvel falava por entre o sono aberto em feridas de sulcos devastados, a criança tornava-se ela mesma a noite que por amor caía veloz. como um beijo. uma corola de sol. como qualquer coisa de muito elementar. como um milagre.