domingo, novembro 26, 2006



Dias havia em que Ulisses caminhava quase cego de raiva. Sempre de rosto fechado, tinha-se afastado do mar e de costas para o horizonte questionava-se a si mesmo e ao todo que o então o circundava. Quando urgia sair do Inferno nada lhe bastava por puro excesso e assim de mundo em mundo as portas íam-se estreitando para ele que teimoso na sua última luta só aguardava pela passagem final, aquela que por ser tão estreita só a poderia transpor já então sem si próprio. Cego, não achava o caminho para casa e nenhum pássaro amanhecia no que então o sustentava. Em boa verdade, opunha-se a si mesmo na mais alta luta que um ser humano pode incorrer. Era uma guerra que ultrapassava as antigas e as actuais de todos contra todos; era uma guerra de conversão, de reversão e de metamorfose. Através de si mesmo entregava-se ao Inferno e de olhos fechados suportava uma espécie de liminaridade entre o mundo que perdia e o mundo em que iria viver. Pairava sobre o Caos criador de mundos, sobre o sentimento profundo de não haver lugar onde estar e de ser outro que até então não era. Nenhuma estrela o guiava, e todos os pássaros se feriam no bico durante o lento canto daquele homem. Caminhava sobre o abismo de entre-mundos e na árdua subida Ulisses fazia de si a consumação absoluta da arte do funâmbulo expulsando com raiva do seu espírito todas as representações do abismo. Esquecendo-se dele, olvidando-o nos passos que exigiam sempre uma audácia sobre-humana, o mortal transpunha-se a si mesmo para o exílio que em guerra a si próprio se impunha de forma pesada. Sobravam encantos, sobrepujavam horrores e pesadelos mas Ulisses tinha dito a si mesmo que não se deteria no caminho da metamorfose e no regresso ao grande deslumbramento do sossego dentro dos rochedos e do cristal lavrado pelos pirilampos. Porque ele tinha a certeza, a certeza de que antes de haver este mundo, existiam constelações de estrelas carbonizadas de amor, porque depois do degrau do perigo, da dor dos animais que lhe diziam ao ouvido o Inverno, das medas que em círculos ao redor da luz zumbiam de terror na sombra da morte, porque depois da monda e de armazenada a fadiga, aquele Homem Criança poderia bem ser a sinuosa e incurruptível coroa, a flor de sangue através das cardíacas estações, a pedra feliz e redonda, enrolada nas pequenas lágrimas do mundo.

sexta-feira, novembro 17, 2006



Quente como um coração redondo e doente. eu tremo com as minhas tardes de olhos divididos no tempo. e enquanto tenho em mim o deserto nenhuma faúlha de vida rompe em labaredas para o futuro. pelo contrário. escrevo a sangue. de rosto virado para o escuro. fechado. sem querer ouvir senão o som de mim mesmo queimado pela chuva. sem que nenhuma parte do sofrimento sobre para escrever enquanto aqui tremo no frio. no frio de te ver. no interior de mim mesmo. na lava. como um gémeo. ensombrado. naquele caminho para a escola. de casaco curto nas mangas. na distância dos ombros descolados na fadiga, deixados ao ar no grande porte do frio. ou ao redor de um quarto aberto pela dor nas tardes. naquelas tardes quentes. doentes. redondas. como as palavras perfumadas. as palavras que hoje tremem no vazio aberto. do amor.

segunda-feira, novembro 13, 2006




Noutros dias os panos adormeciam sorrindo pela cozinha. quando o tempo passa. o último. o coração feito folha, lisa tão lisa que o sangue o engolfa quando imóvel a tarde se desprende caindo aos cachos de luz e fruta para o centro de si. na verdade. na verdade eu não sei bem o que se passa. quando as paredes feitas de fogo e neve me repetem a luz e eu. de mim. solto imagens. imagens no claro timbre de uma água rumorosa junto à melodia do cansaço e de uma mortalidade suja. porque todos os dias chego a casa muito tarde, mãe. com um buraco vazio no meu rosto. o buraco que tu não vês. um buraco de sossego sem começo. na água. entre o olhar e as mãos. entre o gesto. no corpo completo do amor. com uma espécie de morte que se confunde com a roupa, com os telhados inclinados para o fundo da poeira acetinada das ruas. que adormecem. porque eu. porque na dor dos dias esqueço a cor. o coração. do amor silencioso. do amor de dedos embaciados pelo cabelo. pelo tempo. a caminho da escola. quando os panos adormecem. no pêlo macio das mulheres. no eco. da cozinha. na imagem. da roupa. deitada sobre o balcão. no gato. feito de nuvens. inundando, luminoso, a cúpula quente e redonda daqueles dias. que sorriam. caindo.

terça-feira, novembro 07, 2006



E se uma luz branca lhe escondia o que ao mesmo tempo iluminava, durante a noite o corpo dele debruçava-se sobre o cansaço do fundo da floresta em que vivia todos os dias. todos os dias. Alheio à grande comoção das coisas nascia de manhã, pela chuva, nas nuvens frias e numa certa e fina raiva feita de rebeldia. A noite vertia estrelas, um rádio ficava deitado todo o dia sobre a mesa como antigamente. E ele, contudo, caminhava noite após noite, através desta noite ou de outra qualquer que se lamentava por dentro da eternidade como uma estrada que lhe rompia as mãos de sangue e desertos. Amanhã morrerei. Dizia baixinho. paralisado no gesto lento de quem vela já longe. depois do som. dentro de si, cada vez mais longe pelos dias inclinados na chuva e nas arestas das estrelas. caminhando. sobre as águas no grande espaço dos olhos cegos. pois amanhã estarei à tua porta, próximo, enfim. na palavra que se repete. através da distância. do clamor nulo do horizonte fechado como os instantes. caminhando. dançando. como as palavras. pequenas explosões. próximos de apagar a diferença de eu ser. a sombra na sombra. o cigarro no cigarro. o limite no limite. a dor na dor. de corpo enrugado. próximo da luz que então descia.

quarta-feira, novembro 01, 2006