sábado, fevereiro 25, 2006


Por vezes sentava-se justamente nas bermas da vida. no estranho ofício da olaria enrolava as mãos de um veludo alto com uma ternura do tamanho do céu azul. o cabelo e a barba juntavam-se à terra num trabalho de uma beleza sofrida pelo amor. aparecia assim. fulgurante. como num espasmo, num sorvo redomoinhando entenebrecido por uma noite sem movimentos. Bastian quedara-se como um charco de água. vidrado e uno. toda uma sinfonia o devorava por dentro. golfada a golfada, nas imagens que acordavam.

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

terça-feira, fevereiro 21, 2006


eu não me esqueci, avô. eu não me esqueço de ti nunca. e do teu sotão cheio de pássaros em asas resumidos num vento fechado que trazia todas as vozes logo pela manhã. sobre o telhado da casa, descolado do céu. descolado desta mesma noite. de hoje. de hoje, através do tempo. através destes dias de frio. do branco frio que não descansa nas ruas. eu não me esqueci. eu não me esqueci que este frio és tu. que respiras no escuro. no escuro dos teus pássaros que me transformam no tempo por dentro de um amor que fazias nas mãos. naquela lenha. naquele lume. naquela dor transformada em idade pelo tempo. pelo tempo das imagens.

quinta-feira, fevereiro 16, 2006


ou o árduo trabalho das asas pela noite das imagens. e o rosto de Bastian às vezes sorria. enquanto caminhava para trás? enquanto caminhava para trás nenhuma palavra lhe sobrevivia hoje. diz-me: diz-me, que hoje estás tão bonita mãe. que hoje há mil mãos que me seguram de cabeça para trás e na água eu vejo o teu rosto a sorrir no meu por entre os pássaros numa espécie de calor que hoje não sei escrever. desapareceu?, e Bastian caminhava. e dizia. através do tempo. os pássaros. a laranjeira. eu não esqueço a laranjeira, mãe. e os pássaros naquele cheiro com tanta força como as asas. eu não me esqueci. nas tuas asas. eu não me esqueci.

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

todos os meus sonhos desfeitos, pensei. e as imagens fechavam-se numa estrutura total, sintética e de um autismo tão imenso quanto o mar. a criança estava finalmente só. tão só que dela não havia uma exterioridade ou interioridade. Yor afastara-se numa angústia que sofria também no silêncio. o que poderia ser a liberdade de não ser eu? o que poderia ser a liberdade de não ter imagens? o que seria uma liberdade sem imo?, balbuciava Bastian aos encontrões pela memória na noite das imagens.

terça-feira, fevereiro 14, 2006


que eram os sonhos. envelhecidos. assim numa frase caída a meio. com cuidado. hoje, esta noite, nestas sombras negras, Bastian arde num incêndio de terra. e eu deito-me. e morro na dor nocturna enquanto digo: esta noite; eu não sei dizer como esta noite ondula neste oceano de solidão vazio. nestas páginas em branco. como esta morte urgente e coroada por uma espécie de canto junto à terra esquecida. olha: eu não sei como te dizer, eu não sei como te dizer que há em mim uma morte desfeita neste esquecimento perdido para uma terra violenta e grávida de um amor sem fim. eu não sei como te dizer que. que eram sonhos. que esta morte eram os meus braços abertos e que pela noite, pelo orvalho dentro, nos olhos, no mar, eu era aquele que cantava nas pálpebras abertas dos teus ombros. que eram todos os sonhos. todos os meus sonhos.

domingo, fevereiro 12, 2006


Devagar. lembrava-se com a extremidade dos dedos junto ao peito. estou sentado numa cadeira simples debaixo de um tecto. debaixo de uma mesa estão as minhas pernas. lembro-me daquele cansaço cinzento de nada dizer, de ser longo e velho junto ao tempo infinito de uma aula. lembro-me. lembro-me, e há mil crianças em mim que choram por esta história ser sem história. por cair. por ter caído aqui inútil como as horas debaixo dese telhado. desta mesa. deste minuto a morrer. Bastian poderia ser talvez amanhã, penso. e por dentro aquele terror. aquele terror de escrever. de ser hoje e de haver aquela saudade por sentir debaixo dos sonhos que choravam sozinhos. sozinhos nesta sala tão lisa. sozinhos nas memórias já sem território. sozinhos nesta imagem.

quinta-feira, fevereiro 09, 2006


Memória, memória. dizia Bastian cegamente abraçado ao verão alto e magnífico de todas aquelas imagens impassíveis. e por entre as suas pálpebras esmaecia o ar. O ar que eram os dedos que tocavam a água lavada desta fantasia e cada palavra aquela criança engolia como se fossem lágrimas para dentro. como uma flor que chorava Bastian era uma música humana, feita de veias e dores. e vazios. e lugares parados e extasiados numa espécie de alegria.lembrava a luz, penso. Eu acho que Bastian se lembraria daquela luz, não? de uma luz trémula que dançava nos dedos grandes nos lugares tremendamente nocturnos.

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Bastian fechou os braços e o rosto como uma flor. Para dentro. quase sozinho. ombro a ombro por dentro das pétalas. Deixou-se cair no chão e por momentos reconheceu de olhos fechados algumas imagens que soluçavam pelo negro do seu peito dentro. Memória. O que hei-de fazer com estas imagens que um dia a terra vai apagar sem respeito? O que resta de mim agora se amanhã serei nada?, chorou baixinho juntando as mãos sombrias enquanto lentamente as imagens lhe surgiam queimadas pelo ar subitamente ardido.

sábado, fevereiro 04, 2006


O mestre levou as mãos aos ombros do jovem aprendiz.
- Semelhantes a nós - continuou Sócrates. - Apreendeste agora a questão? Julgas que algum aspecto do Ser que eles visionam é real?
Bastian endireitou um pouco a cabeça. - Acho que sim, Sócrates. Não será o sofrimento real para aquele que o sente? Não será cada um de nós a própria medida da realidade? - replicou num gemido.
O mestre fechou um pouco os olhos como se de novo olhasse para muito longe ou para dentro do principezinho.
- A minha rosa - continuou o principezinho -, a minha rosa pode muito bem ser minha criação, tudo o que eu vejo, todas as imagens que eu sou poderiam bem ser aquela catarata de sonhos de que me falas, mas o que eu sinto sobre elas, o facto de que eu sou eu e de que neste ponto de fuga absoluto é inescapável a verdade de que são minhas e de que para mim existem, como poderia ser falso?
- Considera pois, o que aconteceria se na verdade mais íntima nenhuma daquelas realidades existisse. Se no mais fundo da verdade cada um de nós fosse uma imagem de imagens, uma memória de memórias, uma pessoa sem nada de real lá dentro. Já pensaste nisto, Bastian? Já pensaste que talvez na realidade mais profunda eu não esteja aqui, nem de ti se possa dizer com verdade que estejas também aqui, diante de mim, posicionado, lançado na facticidade finita do que ora se apresenta ora se oculta ao teu suposto olhar?


Depois disto - prosseguiu Yor - suponhamos uns homens num sótão em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz. Estão lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões; serve-lhs de iluminação um fogo que se queima dentro de cada um deles; e entre eles e essa ténue luz que se dispara de quando em vez estão as imagens, aquilo que eles julgam ser o imo de cada um e da própria realidade.
- Estou ver - disse Bastian.
- Visiona também aquilo que julgam ser pessoas e por vezes julgam-se nas ruas e sofrem com as noites e com o frio. Ora toda a dor ou alegria que sentem, acaso julgas que são reais?
Bastian hesitou um pouco no silêncio. - Estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses de que tu falas - observou comovida a criança que aos poucos se esquecia de si mesma.