sexta-feira, abril 28, 2006

quinta-feira, abril 27, 2006


Depois o que fica? saio para a luz e há este papagaio que se divide caindo nos dedos de uma imagem. cai devagar. sabes, quando eu acendo as pálpebras e por dentro cai o som do céu na boca, entorno-me de uma ternura que respira depois. o que fica? separando, dividem-se os gestos junto da água tão morna como a de uma banheira que se silencia junto à água e perto do corpo. dividem-se os gestos, separam-se os amigos na minúcia dos sonhos, e o que fica depois? as luzes. na noite, as pálpebras. um sorriso. e devagar tudo se torna de repente tão inclinado pelos dias adentro nos passos de rochedo. depois. depois o que fica? não tem tempo. está aqui. aqui nesta luz que boceja respirando por entre as vozes. está aqui. entre o céu e o chão, nas tuas mãos. o papagaio no céu, lembras-te?


O a manh'ser nasce assim. muito devagar. da minha velha torre eu vejo as aves lentas numa multidão de asas e quando desaparecem batendo os pescoços verdes no oceano, sinto que as tempestades boiam palpitando numa luz tão longínqua como eu. as escadas suspendem-se. eu confundo-me com o tempo. nenhuma siginificação suprema das palavras me segura. há este espaço enorme. e eu penso na rigidez da carne. nesta sucessão estranha de catástrofes tão lentas que espreitam sobre as asas alargadas da luz. em câmara lenta. caindo. espalhando-se enorme.

domingo, abril 23, 2006

sexta-feira, abril 21, 2006


'A realidade humana é o ser pela qual vem um sítio aos objectos. Numa palavra, a ausência define-se como um modo de ser da realidade humana relativamente aos lugares e sítios que ela própria determinou pela sua presença. A ausência não é um nada de laços com um sítio. A tua ausência define-se relativamente a um sítio onde tu próprio te deverias determinar a ser, mas pelo contrário, este mesmo sítio é delimitado agora como sítio não pelo sítio ou até por relações solitárias do lugar a ti próprio, mas pela presença de outras realidades humanas. É relativamente a outros homens que tu estás ausente. A ausência é um modo de ser concreto; é um laço entre realidades humanas, não entre realidade humanas e mundo. A ausência é por conseguinte um laço de ser entre duas ou várias realidades humanas que necessita de uma presença fundamental destas realidades umas para as outras e que não é, aliás, senão uma das concretizações particulares desta presença. Estar ausente é uma maneira particular de ser presente: a morte não é uma ausência. Só os mortos podem ser perpetuamente objectos sem nunca se tornarem sujeitos - pois morrer não é perder-se a objectividade no meio do mundo: todos os mortos estão aí, no mundo, em volta de nós; mas é perder toda a possibilidade de se revelar como sujeito a um outrem.'


Jean-Paul Sartre, O ser e o nada - Ensaio de ontologia fenomenológica, trad. G. Cascais Franco, pp.288-289; 306.

quinta-feira, abril 20, 2006

quarta-feira, abril 19, 2006


O caminho mais curto ainda leva mais tempo, porque temos que voltar para trás. porque temos de voltar para trás. porque temos de voltar para trás.porque temos de voltar para trás enquanto aos pés da eternidade o amor atravessa todas as ruas como num cantar muito brando e enorme. obsessiva é esta solidão. a solidão inteira de ser o príncipio. de ter as mãos a tremer como se ardessem numa angústia de clavicórdios e borboletas pelas noites de verão. recordando aquele calor feito de uma infância que azul cantava por uma espécie de cegueira reconstruída hoje na resina das memórias. são fabulosas, penso. fabulosas são as noites em que te choro e comovido digo uma palavra que logo mergulha no tempo. dentro da voz, dos ossos da minha boca levantada para o céu. do crânio, desta massa de sangue espessa que canta o lugar sagrado. que canta aquele lugar tão quieto. tão delicado e absoluto como o meu silêncio por dentro quando para trás me volto.

sábado, abril 15, 2006

Ulisses acabara de chegar à ilha de Trinácia, onde pastam em grande número as vacas e as robustas ovelhas do Sol. Foi ali que o homem astuto se esqueceu da recomendação do adivinho cego e de Circe de Eeia, divina entra as deusas: era necessário deixar o gado incólume e só pensar no regresso a Ítaca. Era noite e o filho de Laertes, homem teimoso, de variado pensamento e grande urdidor de enganos, sentia parte da sua força escapar-lhe pelo rútilo cansaço do corpo. Tudo nele era de ferro mas vencido pelo sono de tanto vaguear pela rápida noite dentro, Ulisses afastou-se do mar brumoso e longe da Aurora de róseos dedos, arrastava com os seus companheiros a nau para uma côncava gruta na ilha do Sol. Todos adormeciam. E durante um mês soprou Noto e nunca lhes faltaram os sonhos de que os mortais tanto necessitam para viver. Por isso, durante esse tempo, abstiveram-se do gado. Mas quando do interior de todos os homens cansados, os víveres desapareceram, uma parte de Ulisses temeu a morte, o mais desgraçado dos destinos. Não conseguindo afastar o desejo daquela espécie de comida, os olhos de Ulisses turvaram-se de medo e na confusão da inquietude ele e os seus companheiros posicionaram-se em torno das vacas ainda assim rezando aos deuses. Depois de terem degolado e esfolado as belas vacas, Ulisses tremeu ao sentir o doce aroma da gordura quente. Gemendo perante o mar cor de vinho, a ruína acercou-se do seu coração e agora Hiperíon, o Sol, exigia a Zeus pai vingança. Ulisses entrava pela noite dentro: vendo só céu e mar, uma nuvem negra colocou-se sobre a côncava nau escurecendo também o mar. Zeus trovejou uma raiva imensa e atingiu então a embarcação com um raio despedançando o coração e a vida do mortal Ulisses. Sopravam os ventos trazendo o sofrimento ao filho de Laertes e na tenebrosa raiva dos deuses, o mortal foi levado pela noite, sugado pela água salgada para dentro de um sono que lhe retirava a possibilidade do regresso a casa.

quinta-feira, abril 13, 2006

quarta-feira, abril 12, 2006


Aguardas. São seis da manhã e eu sei que do outro lado da exaltação do mundo, nos terrores da noite vagabunda és tu que me seguras como uma paisagem deitada e enorme pela vida. Tantas vezes. Tantas vezes me aguardas que não sei se algum dia te atrasarás. Sentas-te. misturas-te no chão ou olhas-me vertiginosamente pelas pálpebras quase transparentes da manhã. e da porta do quarto para a cozinha tu és sempre os meus passos com uma fidelidade sem razão. lá fora o sol, a chuva ou as luzes frente ao escuro. nada dizes. e é tão tarde para ti porque me aguardas sem esperar deslumbrada pelo mudo viver dos dias. são seis da tarde. são seis da tarde e eu sei que do outro lado do mundo estremecem as cidades lavradas pelo brilho aberto do céu intangível. são seis da tarde. e só tu que me aguardas sempre estás puramente aqui deitada numa delicadeza sem nome, nocturna e misteriosa.

terça-feira, abril 11, 2006


Com os dedos caio longo no silêncio extremo e cansado. Adormeço nas palavras. Sabia-se que seria talvez assim: um dia na ressoariam violentamente pelos corredores as palavras e ressoando nas paredes tudo me apertaria as veias tenebrosas como uma criança de malha que segura um fino balão feito de poemas e imagens. O meu corpo? O meu corpo é onde poderia começar o cansaço do mundo. O meu corpo? Longe batem as ondas no tecer amado das mães. E estão ali, demoradas, vigilantes, silenciosas e numa ternura de flores tecidas com os dedos.

quinta-feira, abril 06, 2006



Doía-lhe o corpo por dentro. Sentava-se aqui e lentamente descobria que tinha tão pouco para dizer. tão pouco para viver. Doía-lhe o corpo por dentro numa ternura sem tempo. eram as pernas que lhe tremiam. era o coração que se lhe apertava como uma máquina sem vida. À noite toda a sua casa gemia de dores. Transpirava. E era ainda aquela dor. aquela dor que vinha dos livros abertos e abandonados junto à almofada vazia perante a noite tão só.