quinta-feira, junho 29, 2006


Lá longe enquanto as gaivotas se misturam no sobrenatural odor do mar, aqui bem perto os pescadores alinham para terra os cabelos do mar junto à luz. Habitado por cavalos de um som magnífico diante da água, o mar torna-se aqueles próprios pescadores negros na força e fulgor das suas mãos. Era aqui, penso. Se tivessemos conseguido habitar uma morada que fosse do silêncio, se depois do esquecimento nos tivessemos encontrado, gaivotas teriam atravessado o nosso corpo e crepúsculo. Também aqui não estivemos. Talvez nem mesmo eu aqui tenha estado; pesam as madeiras do caminho sobre a areia, arriscam-se as gaivotas sobre o mar azul por um peixe, e o céu derrama-se levemente pelo horizonte acendido subitamente. Ninguém aqui esteve e eu sou este animal que chora dentro da ira.

quarta-feira, junho 28, 2006


Teria sido aqui que eu vos teria encontrado. Na memória de outros dias possíveis teria sido exactamente aqui. Por entre os três desertos das minhas mãos, a areia, o mar e o céu, teríamos aqui chegado num qualquer sábado da vida. Ninguém vos disse que eu estive lá. Ninguém vos disse que esta imagem sou eu naquele dia. Ninguém vos disse que ali fiquei pelos mananciais da noite só para vos ver estendidos pelo silêncio. De manhã, levantei-me antes ainda da luz se anunciar, antes de qualquer mendigo ou pássaro abandonado ao vento se mover. Todos dormiam. E voçês também. Havia uma luz de néova na doçura imóvel e suspensa do vento. Ninguém vos disse nada, e no entanto estão todos aqui. Estamos todos aqui. E ouvimos-te. E eu pergunto-me quem sou, que pensa de mim a metade do que eu me torno quando me aqui me escrevo. Teria sido aqui que eu vos teria encontrado. Como um abismo. No mesmo silêncio da madeira junto ao areal espraiado de branco. Teria sido aqui. exactamente aqui.

terça-feira, junho 27, 2006

quarta-feira, junho 21, 2006

Miratejo, 18 de Junho de 2006.


Quando aqui foi dita, esta imagem não sabia. pequena, ignorava quanto ainda teria para dizer. para dizer que vos pertencia. que só e a todos vós pertence. não sabia porque não era possível sabê-lo, digo. Mas hoje. agora, sei-o. A poesia não morre por causa de ti. de ti. de ti. de ti. e de ti. e de ti. e de ti. Por tudo. por tudo o que vocês são eu só posso levar os meus olhos ao céu. e sentir-me homem. assim pequeno e humano. com um coração que se confude com a luz comovida. ou com a beleza. com o meu rosto lavrado pelo pranto azul do caminho para o céu. e uma boca espantada por um silêncio gasto pela terra. para depois, para depois eu abrir as mãos. e depois. convosco. eu trazê-las de novo ao peito. e aí eu sou. aí um pássaro. que existe. que contigo, que por ti religa o céu à terra em torrentes lilases através dos corredores e dos dias. eu trago-vos todos comigo. tão por dentro de mim. tão perto. tão suavemente. como o teu respirar junto ao vidro. junto ao mundo. que não morre. tão perto como um abraço de papel que se desdobra numa página. tão perto quanto o vosso olhar. o vosso cuidado. a vossa atenção. o vosso escutar. e a minha noite é mais feliz. porque não morre. porque a poesia és tu. e tu. e tu. e tu também, ouviste? e tu também, sabias? sim, tu também. porque a poesia somos nós. quando sorrimos. quanto tu, meu amor, quando tu sorris. quando tu. sim, tu, e tu e tu. quando sorrimos. ou quando choramos. porque para isto, para isto do poema contínuo, para isto basta sermos e morrermos. basta erguer as mãos ao céu. e ver um pássaro. e saber. e saber que tudo está ali. dado. doado. e sem porquê.

domingo, junho 18, 2006

sábado, junho 17, 2006


Extintos os pássaros contra a noite despe-se a luz do dia na incandescência dos lábios vermelhos rentes à montanha. Grandes devem ser as feridas do mundo para que todos os dias o céu se dilua tão completamente em bolsas de sangue. Ao jantar, lembro-me bem, sou só eu. Eu que no rastro frio da memória da noite penso nas grandes cerejeiras que se levantam para o céu com junto à montanha, sob as pálpebras puras do céu. Ah estes dias. Aqui há tanta gente que vocês não vêem. uma realidade invisível cheia de outros mundos, na pluralidade do criado. com grandes rostos espantados e redondos através da luz baça. eu vejo toda a minha família junto a mim. infinita. como um esmagador infinito de infinitos. e no entanto nada mais sou se não isto. esta consciência tantas vezes rasa de que existo. aqui. fechado. irreparavelmente circunscrito neste círculo de sensações. objecto vivo e animal que desce sobre a mesa plácida perto da luz, sento-me. quando chego e casa. e eu sou de uma impureza que logo se denuncia. pelos dedos. pela mão. pelo talher meticulosamente disposto diante de mim. diante de mim nesta distância. de eu ser. de haver este poder ser. na vulnerabilidade tangível mais só que a solidão inteira. por eu ser sempre, este sempre inatingível centro de um orgulho opaco. e eu podia ser Deus, um deus em mim na suavidade horrorosa do tempo, um deus que se torna 'eu' neste amontoado impuro de coisas vistas e reais. um deus que se perfaz em sonhos, em pensamentos de regresso por causa da última carência. da culpa. destes muros calcinados de papoulas vermelhas abandonadas pela esperança na pura solidão desta viagem. e eu digo. nem que eu chegue a casa e me deite a dormir, nem que eu conheça as paredes eburneas do meu crânio. em nada me posso saber, pai. em nada me posso saber porque de cada vez que em esforço me tento iluminar uma mesma parte de mim se apaga na inconsciência. e aí, nessa longa noite para lá das ondas azuis que se reflectem no mar pardo, extinguem-se os meus pássaros. e contra a noite eu sou o som, o alimento da minha cama e a flor do campo. e contra a noite pesa-me o coração como um mel escuro num olhar que envelheceu dentro dos olhos.

terça-feira, junho 13, 2006


- Mais alto! disse. Para colher as melhores cerejas era preciso chegar mais alto. Era uma árvore imensa e diante do inverno sei que era ela que sonhava a chuva na distância atravessada pelo campo. Mais tarde, pelo sol dentro lembro-me de ver aquele Homem no crepúsculo azul dos seus olhos. Era uma árvore que se abria grande para um bosque em memórias na resina vermelha do coração dos dias. Mais tarde, ao entardecer perante a mesma árvore deitada sobre o campo dedicava-se a terra à bruta lavoura dos insectos e dos pássaros perseguidos pela noite. Abre-se a memória. A minha. A tua. Os insectos. As esferas líquidas de suor perante o centeio na tarde abafada e cinzenta. As mãos do meu pai. As ortigas, as ervas daninhas atormentadas pela chuva contra a madeira derramada pelo chão destinado ao sol e à sombra. - Mais alto!, disse, de súbito. E a terra era este braço de uma voz quente como um estábulo acendido entre o calor e água. Cereja a cereja. Fruto a fruto. Mão a mão. Dois a dois, como que mostrando que a solidão é a mais profunda marca da vida.


Era uma grande recapitulação. Era como um círculo que se fechava lentamente por dentro. Como duas mãos que no escuro surdo colidiam sem nome de serem tão brancas pelo escuro fora. Era como um sonho. minúsculo. suave e deitado sobre uma poça azul quando as crianças lá fora sorriam. Lembro-me de nos juntarmos ali todos. Lembro-me de sermos muitos. De estarmos ali e tudo podermos reencontrar naquelas noites em que as árvores junto ao céu batiam contra o vidro do tempo. Lembro-me do diálogo entre as noites e os dias. destes braços monstruosos de um sonho petrificado no grande e belo desmoronamento da minha vida fascinada. Lembro-me disto tudo absorto; como que alimentado pela sombra das sombras mais profundas de uma fotogenia inimaginável e inalcansável pelo inexaurível e ininterrupto lastro das raízes do tempo. pelas raízes, pelas minhas raízes dentro numa terra tremenda. que não esqueço. mesmo no tumulto e queda dos meus dias.

segunda-feira, junho 12, 2006


Aos olhos daquela criança nascia uma terra de força bruta, de penhascos e escarpas profundas como o mar alto. Era uma serra da altura de uma estrela que o mar perdeu um dia e que ali se erguia sem medo como uma rocha junto ao céu. Orgulhosa, contida em tudo, difícil de trabalhar como um cavalo mas de uma rectidão comovente, era uma terra entenebrecida e apaixonada pelas grandes vertigens do frio e do calor. Aqui, nesta terra úbere de uma paisagem indizível e rara sobretudo perante o anónimo labor quotidiano do trabalho dos que nela então se arriscavam na faina, o principezinho dormia na casa de um homem e de uma mulher que apesar de tudo, mesmo com o avançar da idade, plantavam ainda flores no quintal para cedo morrerem pelas geadas dentro ou então pelo ardente calor do Verão. No carro a criança espreitava pela janela. Grande era a paisagem que lhe abria o coração. Era um lugar de extremos, sentiu. De uma beleza sábia, teimosa, difícil e árdua na força do granito que lhe escorria nas veias e riachos com o raro gozo das flores que escorria no centro assombroso do delírio desta montanha.

domingo, junho 11, 2006

sábado, junho 03, 2006


Cansado, quando venho da minha cidade, passo sempre por aqui. E às vezes vejo papéis vagabundos que redomoinhando se embriagam pelo ar fora acendido junto à tarde que começa a cair. E pelos meus passos dentro há todo este algodão espalhado pelo caminho dolorosamente aberto depois do calor do dia. Desço do comboio. Atravesso blocos e blocos de prédios. E o chão é este orgão macio e suave, feito de uma matéria atenta ao sombrio e lento trabalho dos meus passos. Passo rua fora. E é este algodão melado e maduro que avassala toda a cega visão possível de um mundo que não seja esta luta inextíguivel entre ternuras na fulguração das massas. Tão macio. Tão suave, este algodão. E brilha e escurece. E cai a noite como a chuva aos grandes cachos por cima dele. E depois atravessa o sono e toda a terra, e todos os meus passos ainda lá estão. no segredo daquele segredo de tudo ser esta ternura sem tamanho. esta ternura de haver simplesmente o que há. esta ternura exasperada. da cor do algodão sujo pelo tempo. pelo pequeno bafo das nuvens, dos animais e das estrelas.