domingo, dezembro 31, 2006





A minha avó estendia a roupa nos carvalhos que padeciam pousados no lugar de crescerem. Punha a mesa para o silêncio. Ao almoço havia aquela luz que nunca esquecerei. E por dentro daquela casa abriam-se as giestas, pequenas estrelas de conversa que floriam como pinhas fechadas no peso das sementes.



Tinham-lhe posto uma grande rosa incandescente à volta do corpo em brasa. Ulisses inclinava a cabeça e dia após dia vomitava uma espécie de enjoo das memórias que então naufragavam em cada um dos seus ombros. Tinha os olhos cansados quando só o chão lhe servia de paisagem. E no entanto havia ainda sons que o chamavam de longe. Era o meu avô que pousava a enxada sobre a terra. Depois de escavar o silêncio bruto punha então a enxada ao ombro. Ou então era a minha avó que longe, tão longe e lentamente estendia a roupa que no meio dos carvalhos se exugava ao sol. Ulisses abria muito os olhos e pensava no tempo. naquele tempo que contra o esquecimento. naquele tempo em que puxava o arado no corpo daquela mulher com quem sonhara. daquele tempo em que à noite, do choro dela, colhia espigas, amarrava espigas para que morressem lado a lado. como a roupa estendida. ao céu. junto aos carvalhos.

sábado, dezembro 23, 2006



eu estava morto e dentro da lâmpada que batia branca contra as casas o meu sono era aquele animal morto que se estilhaçava sobre uma canção dentro da água. soubesse eu, soubesse eu o que me esperaria ainda; se crescer, se morrer iluminado no zumbido da sirene que canta os mortos pelas ruas para que ninguém possa soldar o silêncio. eu estava morto. e era como se alguém passasse de noite pelas ruas e a calçada se enrolasse contra as casas junto ao branco de uma lâmpada. quebrando-a. batendo, insistindo. batendo porta a porta para ninguém adormecer naquela mulher do lado de dentro do frio. rápido. tão rápida. mulher que se rompe de lâmpada apagada. é a mulher que desato com as mãos em redor da luz. a mulher que saía das casas. avançando. porta a porta. saindo dos vestidos de pólen com o cabelo por dentro muito branco nas pálpebras da cegueira. dentro daquela lâmpada. que batia no tacto das casas. que se equilibrava na rosa feita de nuvens. da mulher. e do seu vestido que se queimava nas pupilas dos meus olhos.

sexta-feira, dezembro 22, 2006


domingo, dezembro 17, 2006



Eu estava morto. e naquele dia eu vi-te. vi uma mulher que dentro de si respirava o escuro nas suas grandes asas brancas. uma mulher que dentro das suas plumas era a noite. aquela noite de onde nunca acabarei de regressar. aquela noite onde as mulheres se volteavam no céu como nuvens muito negras. nuvens que respiram o céu antes da noite. nuvens que morriam uma a uma. como aquela mulher que acordada me via. quando as mulheres não param de morrer dentro da minha escuridão escavada no terror do meu quarto. porque as mulheres não param de morrer e oscilam dentro de mim tecendo o tempo dos dias da lembrança e da minha desgraça. depois da chuva. daquela chuva de que morro. correndo. gemendo no candeeiro do meu quarto. porque morrem como as amendoeiras dentro das crianças arvoradas nos frutos. e na terra devastada. dentro do. pó. daquele pequeno brilho dos meus olhos. deixados. na melodia de estar em silêncio. na melodia dos meus olhos. que se apagam desfeitos. deixados ao fogo. e sem ninguém os ler.

domingo, dezembro 03, 2006



a minha casa seria o meu corpo sempre a ruir ao relento das minhas mãos. dizia. deitado na cama. agasalhado na luz da mulher, da única mulher que como um cavalo lançava o cabelo ao sono para que ondulassem todas as estrelas. dentro dos movimentos migratórios, levantadas, alteadas por cima da boca e dos gritos do respirar magro daquele corpo. estendido pelo caminho. por dentro das suas próprias divisões. como um pássaro morto que continuava o seu voo. como um ninho desfeito. pensava outra vez. respirando. respirando o fervilhar daquela doença sem barcos. de uma corrente que o levava para longe. para longe dos que regressam. com todas as ideias moldadas a partir do céu da boca. da poluição do sangue. para morrer. inchado no tráfego nocturno da cidade. da ideia de minha mãe. deste poema dobrado. nas asas. sem outra voz que não seja a ideia. a mesma imagem despovoada e sem casas de querer voltar ao chão. de cair no equilíbrio da luz miudinha depois dos temporais. para morrer.


Noutros momentos os dias deitavam-se para o negro do chão. e nisto, Ulisses caía e desejava com os punhos cerrados e os dentes em sangue nunca ter nascido. Para onde me leva isto tudo?, questionava. Para onde vou? E no sofrimento da interrogação por si mesmo tinha a percepção clara e irredutível de que estava só, de que morria sozinho mesmo que por vezes estivesse acompanhado. Ninguém morria com ele e na humilhação clamorosa das coisas, o Filho do Homem sofria perdido e inclinado para o silêncio das cartas que dormiam com ele. tão sucessivas. tão sucessivas como as migrações. de pássaros. de cartas fechadas que nunca abri. dentro do movimento, do pequeno movimento do carteiro. mas nada. nenhum barco chegava de uma manhã. Nenhuma luz lhe pendia da cabeça. longe, longe. na cinza do cabelo. e o Filho do Homem chorava o ar cansado cercado pela noite. que o ceifava. sozinho. no tempo repetido do tempo. cercado pela luz. no espaço entre as suas mãos. pela sede de que morria como um tiro no coração. por não saber. por não querer saber. de que a sua sombra se multiplicava pelo sono. e de que cada sonho o levava para mais longe. e de que a pouco e pouco deixava de separar o silêncio do que escrevia. era um ninho desfeito. uma palma da mão que se virava para longe. para longe, no meio do que escrevia e do que esmagado silenciava. para nunca mais, dizia. rebentando como um clarão enraivecido.