sábado, fevereiro 24, 2007



Se eu regressar não morrerei. se eu regressar não morrerei. se eu regressar não morrerei, repetia, sentindo pela primeira vez a terra nas mãos. ou as mãos na terra. mas o acontecia era um sentir diferente. tão diferente. porque pela primeira vez teve dúvida de quem ali sentia o quê. se a terra. se eu próprio, pensava. se eu regressar não morrerei, repetia enquanto por dentro segurava o único sonho que ainda trazia consigo. era um sonho de asas muito azuis, um sonho que batia de repente as pálpebras numa imaginação que se rasgava em imagens pelas pestanas em corola abertas. e pela primeira vez, Cristo chorava. chorava porque sentia umas mãos que o tocavam com o ruído dos ossos. com uma carne regular na concavidade dos dedos. e grão a grão, esquecendo, mexendo-se devagar naquela cicatriz de haver pálpebras, o principezinho continuava a descer, caminhando escuro pela noite solitária e cada vez mais lenta através dos esconsos caminhos da memória. quando eu era criança este sonho azul não era ainda um sonho, pensei. e o coração daquela criança enchia-se de sofrimento através dos traços que das imagens se soltavam em luz. pelas pestanas. em neve. se eu regressar. se eu regressar não morrerei. e dizia estas palavras. estas palavras com uma luz muito azul dentro do espaço aberto entre as pálpebras e a pele. se eu regressar. e abria e fechava os olhos. como as asas de um pássaro. ou de uma borboleta. se eu regressar, não poderei morrer. não poderei esquecer. as imagens. a minha mãe. as imagens como grandes manchas. através daquela rapariga tão mansa e de trigo adormecida nos trapos. as borboletas e as pálpebras. o corredor imóvel, agora dobrado sobre o peito. perdido. tão perdido. ouve. pai. se eu regressar, morrerei sempre.


Caído em sonhos de morrer o principezinho jazia sem vida naquela terra árida e estrangeira. Tresmalharam-se todas as canções, morria sozinho com os seus pensamentos ainda junto a lembrança do soalho que a sua mãe esfregava de noite após o jantar. lembrava o som dos pano no chão. e hoje, hoje Nenhum rumor o abalava. e todo ele era só o peso exacto do corpo sobre a terra. Nenhum sonho. nem o cabelo ondulado das mulheres deitadas ao sal e ao vento lhe repetia o nome, o seu nome. no azul das suas asas estendia a mão sobre aquela terra de pó. girava a mula em torno da nora, pensava. era uma cegueira que se soltava às labaredas como cardumes aos zizagues por um mar dentro. um mar de azul dentro das asas de uma borboleta cheia de sonhos. daquela borboleta. daquela borboleta construída na cegueira das crateras da devastação que se multiplicava numa humilhação sem retorno, sem um regresso que não fosse o de repetir em círculos perfeitos o caminho cego na história da distância, dos cercos e dos lugares. daquela borboleta. que por nascer gemia em labaredas.


Eram tempo de uma grande tristeza. O Filho do Homem caminhara noite e dia durante séculos e séculos na solidão infinita de ocupar um lugar no aberto das cidades e da terra. Chegava hoje ao cimo de uma montanha vazia e tinha o cabelo comprido na grande imagem do céu que perante os seus olhos se estendia. Caminhara dias e noites na minúcia dolorosa de uma viagem tacteada pela divisão das paisagens tresmalhadas, pelas noites sem vizinhos ou amigos junto à cerca dos fugitivos e dos transviados nos pontos mais altos da noite. Para si não guardara uma única manhã; viajava desde há muito já sem olhar, já sem ouvir ou tactear. Nada o guiava. Tinha feito de si a distância mais pura e sem a leveza das nuvens, tinha feito de si a tristeza mais funda das vedações do haver um para ti e o para além de mim nas fronteiras indecifráveis de tudo o que deve morrer. Hoje, o principezinho, chegava ao cimo daquela montanha estéril. Não sabia já em que direcção havia de morrer e desmachara tudo na raiva de haver degraus mais altos do que podia decidir enquanto se afogava sem nada. Olhou então para o cimo do céu e naquela noite de uma luz muito azul a criança de peito agrilhoado na órbita quotidiana do tempo deixou repousar um pouco o corpo. Cansado caía e na melodia da carne exaurida e estéril, no instante em que fechava os olhos, o seu espírito lembrava-se do agasalho das asas do amor, de uma infância sonora na quietude das plantas e dos animais, de um silêncio que só era lentamente interrompido no escutar atento da força da vida nas nervuras dobradas e centrais das folhas muito verdes nas plantas. O Homem caía; caía sozinho e no fim, logo antes do princípio do mundo, dentro de sua alma, havia um só precipício: a verdadeira noite. Sem nada. Sem palavras nem tempo.

quarta-feira, fevereiro 07, 2007


No clamor da cidade dos Homens o principezinho deixava-se arrastar por uma descrença que o lançava cada vez mais para um mais profundo cansaço. Caminhando, miseráveis eram as imagens dos destinos que lhe apareciam e com isto Ulisses quase já não reconhecia a sua própria fala junto ao asfalto daquela noite. Sentia uma tristeza que emergia na sua alma desde logo como inarrável, como qualquer coisa impensável e de profundamente impensado no âmago de si mesmo. Nenhuma palavra pode descrever o que eu sinto, dizia sozinho no escuro silencioso e mal iluminado do automóvel. Por cima de si erguia-se um grande céu de braços estendidos pelos horizontes e o principezinho sentia as suas pernas a tremer ligeiramente. A minha viagem será assim tão funda?, murmurava enquanto abria o vidro. Mais fundo do que este rio? A minha vida chegará a casa? E punha-se a cismar sobre o seu rasto, sobre as cidades que já tinha visto, sobre os Homens com que já se tinha cruzado e que sofriam sozinhos. Como vou eu conseguir? Como vou eu conseguir unir as minhas mãos pequeninas ao milagre enorme que seria eu sobreviver no interior desta morte? Lá longe a cidade podia talvez afastar-se; o principezinho atravessava o rio por onde não passava nunca duas vezes sem que no entanto se apercebesse. Começava hoje a esquecer o que tinha aprendido com os seus melhores mestres. E aquela criança que vinha ali deitada junto à estrada vagabunda, sofria, sofria como ela própria não conseguia dizer ou sequer imaginar. Sentia-se fraco. Seguia estrada fora, acelarava sem imagens ou com raras explosões de memórias que emergiam nos milímetros de uma espécie de claridade quente que ainda assim lhe restava. Será que morrer não é nascer? Não será nascer uma morte para a alma? Ulisses olhava o rio pela janela; o trânsito, de súbito, parára. Pensou que na sua vida talvez ele mais não fosse do que um outro rio convencido de que o não seria. Não será nascer uma espécie de morte? insistia. E lá longe, longe, dentro de si talvez emergisse uma borboleta, uma alma ou um sonho.